31.8.07
a estação após hamlet
esta ideia é muito moderna, não sei quem sou,
sei que sou. é uma ideia que a manhã não dissipa,
que vem mais da ficção do que da aflição e dobra
a condição da qual emana. é uma ideia que celebra
um certo modo de cair, descontínuo, em distúrbio,
embore empreste apoio ao corpo sob vertigem.
daí, levantados à posição das coisas com ser
e estar, olhamos os peregrinos que continuam
a perder-se. é uma ideia. mas há ironia no panorama
e a rendição à oração que termina com o manifesto
de uma vontade e de um desejo, let it be, let it bleed. s. d’o.
29.8.07
ateneu mirage, ii
a água no chão era para onde dirigíamos os pés.
éramos habitantes do deserto, contemplativos,
sem solução geográfica para as nossas condição
e sede. que havia mundo e mundos, máquinas macias
neles também, arcádias, cadernos, dizia-nos uma voz.
e fomos. ir não era fugir daquela boca apenas, era mais,
fugir do seu sopro em palavra. porque quando nos calávamos
e a voz também, podíamos ouvir a respiração do animal
que tínhamos e éramos. a fome vinha sempre depois. s. d’o.
27.8.07
ateneu mirage, i
antes do passado que já somos éramos nómadas, povos inteiros
compreendidos no chão. sob o horizonte debruado adiante,
aí, eram os corpos que não iam à terra, era a ode
que não foi cortada. era também o caminho como caminhado,
interzone, não destino. que conduzíamos a estranheza
a além, disto acusavam-nos. embora não confirmada,
de tal culpa jamais fomos aliviados. mas era verdade,
levávamos o que andávamos ao trinta e sete de um inferno
privado que não conhecíamos. o sangue, a mesma cela,
era o que conduzíamos ambulantes. e disto nunca nos foram
os remorsos, mas tão só o que víamos. s. d’o.
10.8.07
lacrimæ rerum
digo, esta sujidade que impregna as veias, o coração
cru. digo, from her to eternity é uma canção
que esqueci no teu sangue.
já não escrevo com a eternidade de outrora,
nunca escrevi. falta-me a medida ou talvez mais,
o satélite, os cigarros, o vinho, a continuidade.
já não sonho lugares preenchidos pelo trote nocturno
dos cavalos. agora acontecem-me cidades, cidades apenas,
barcelona, buenos aires, new york, praha, cidades
que nunca visitei. acontecem-me num apelo absurdo,
semelhante ao do sujeito que se confronta com o espelho.
esta sujidade que impregna as veias, o coração
cru, entregue à vontade divina, que o extrai da noite.
vislumbro o tráfego, a expedição. vislumbro como,
se passassem, passariam as bicicletas neste terraço,
com uma vertigem que já não consigo. é por isso
que, repito, from her to eternity é uma canção
que esqueci no teu sangue. s. d’o.
8.8.07
julgo que o tempo me falece
julgo que o tempo me falece. contra a ideia de morrer devagar,
devagarinho, cumpre-me a vontade de aplacar os teus corações
e contratar a evidência suma que são as tuas costas e não vês.
agora julgo o tempo que me falece, a coroa que me prometes.
e, como sou, sendo para a morte, sujeito sob a sujeição suportada
pela própria imaginação, julgo que o tempo que me falece continuará
eterno, contigo e depois. s. d’o.
6.8.07
das coisas, das horas e dos ofícios
por causa das coisas, coisas que são assim,
começo pelo coração. sigo a linha, os seus golpes,
as sístoles, passo a passo. em todo o caminho
estes passos prenunciam o horizonte. mas na continuação
das horas já é tarde o próximo passo.
a casa é demasiado pequena. e a janela embaciada
compromete a respiração. os homens não podem
morrer aqui. não se pode esperar, há uma missão.
o nosso ofício é repetir. às vezes repetir dos dias
esquecidos, repetir da pele, o que antes já foi repetido
também, arrastando a uma cicatriz. espera-nos no corpo
esse cuidado, para, por confirmação, podermos ser
quem somos. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).