31.7.06
(in)discreto
há, ele sente, uma contradição no corpo.
começa a condição como noite. o céu
parece morto ou pontilhado por uma luz velha.
a escuridão dá-se cálida e demorada.
dentro de casa, ele observa a correspondência
entre os elementos. a disposição do armário,
a louça no seu interior, os pratos e os copos,
o sal, o azeite, o mel, o açúcar, o café, o pão.
as portas do armário estão fechadas.
os cães deixaram de ladrar. uma outra vez
acontece o silêncio. em casa, todos os outros
dormem. e, naquele instante, ele sente que
o seu corpo não está na voz, ele pressente que
ninguém lhe testemunha o sangue. s. d’o.
29.7.06
a marca amarela. há famílias que se mobilizam pelos seus, cumprindo a verdade que há no lema todos por um. é assim em little miss sunshine, realizado por jonathan dayton e valerie faris. e não obstante alguém dessa família expresse desassossego, escrevendo num bloco i hate everyone ou welcome to hell, o veículo de todos, da família, é amarelo. 3.
28.7.06
nenhuma contrição
deus sobrevive-nos de um modo estranho.
é por isso que, ocasionalmente, é necessário
dizer-lhe até à próxima e prosseguir.
para além disso, se a alternativa é composta
apenas pela concessão de três desejos,
prefiro a minha condição, sem fortuna.
o erro é-me hipótese suficiente. s. d’o.
27.7.06
o chão que ela pisa e para além. em me and you and everyone we know, realizado por miranda july, um dos casos - o caso axial da narrativa cinematrográfica - começa pelos pés. porém apenas começa pelos pés. uma frase de richard, people think that foot pain is a fact of life, but life is actually better than that, opera verbalmente a deslocalização do plano de referência do caso, dos pés para a vida. mas o que é mais surpreendente neste filme não é o referido exercício de translacção. é, sim, a expressão da vida inscrita nos elementos como desejo, como impasse e esperança, como anseio. em algumas cenas essa inscrição é apresentada sob a forma escrita, enquanto mensagem gravada numa superfície. mas essa inscrição acontece em outros elementos também, como, por exemplo, a arca do enxoval da pequena sylvie. ou seja, através das diversas cenas vai sendo projectado o desejo e a sua força. provavelmente é richard quem verbaliza de modo mais expresso a tensão provocada por essa força, ao dizer i want to be swept off my feet, you know? i want my children to have magical powers. i am prepared for amazing things to happen. i can handle it. mas, porque é desejo, há sempre uma suspensão, uma dependência, algo que demora. em todas as personagens há a espera de algo, a espera de uma palavra, a espera de um contacto, a espera de uma presença, a espera de um tempo, a espera. 3.
26.7.06
sobre vivência
este é o trajecto, abertura e marcha
para o labirinto. há verdade, a melhor,
apenas nas mãos, não no chão. as dúvidas
são em todos os outros planos e lugares,
a cada hipótese de mudança de direcção
ou de sentido. mas na terra é, escreveu
camões, tanta necessidade aborrecida! *
o que faz de sempre a sobrevivência,
o que faz da sobrevivência sempre,
o combate. s. d’o.
* tanta necessidade aborrecida! é o verso quarto da estrofe centésima sexta do canto primeiro d’os lusíadas.
25.7.06
herança e herdeiros. o efeito da família nuclear, mesmo quando dissoluto o motivo da sua origem, é um resíduo, resíduo que permanece activo. em the squid and the whale, realizado por noah baumbach, esse facto é expresso com evidência. a resistência do referido efeito não decorre do facto de a família ser a célula primordial da grei. decorre, sim, das suas consequências, do regime de preservação e de desgaste dos afectos, do desencontro e da memória. decorre da inelidível prova do vínculo, a prole, e do trauma. apenas pela morte, limite, a família acaba. enquanto a morte não chega, a família cresce e, como ela, estende-se o seu efeito. 3.
24.7.06
exercício de escala
sob a mão, pousada, nada. a mão
cheia de nada.
o absoluto das formas, das arestas,
dos contrastes, das relações. nada.
mudou o mundo, mudou a escala.
continuou a vida. o mesmo nada, elo entre
o que foi antes e o que será depois. s. d’o.
22.7.06
da redenção. a redenção é um modo de regresso, porém como reparo e continuação, não como retorno. 3.
21.7.06
certidão de óbito
dizer o corpo. dizê-lo até à exaustão,
dizê-lo até à extinção. dizê-lo até não ser
mais do que uma metáfora, com a qual
e pela qual a falência, por crédito,
promete-nos a morte. dizer o mesmo corpo,
o mesmo lençol. e morrer assim, dizendo-o,
com sossego, com burocracia. dizendo-o como
se fosse uma declaração para fins estatísticos
e não caixa de paixão. dizendo-o como
se fosse um detalhe e não a precisão decifrada
do fim, do que acabou.
dizer o corpo. acordar e continuar a dizê-lo.
dizê-lo como confronto eterno nos olhos, luz
sólida. dizê-lo para o vivificar. e morrer depois,
dito. o lençol é a mortalha. s. d’o.
20.7.06
et punir. o corpo é o suporte da responsabilidade e da culpa. daí que qualquer proposta de sanção, assim como qualquer reparação disciplinar, seja necessariamente sobre o corpo. 3.
19.7.06
completude
faltava-lhe um poema. por essa falta
não podia completar-se na culpa. mas,
mesmo assim, a acusação não esperou,
o libelo foi lavrado. s. d’o.
18.7.06
17.7.06
o que é a cidade?
escrever a cidade.
escrever a cidade. que cidade?, sob que nome?
escrever, escrever até ao engano.
escrever a cidade. virgina wolf?, clarice lispector?,
escrever a cidade. franz kafka?, robert musil?
riscar, não apagar, lançar a mão. escrever apenas.
riscar, o que é riscado vinga mais
riscar, facilmente na memória.
escrever a cidade, reescrevê-la, quando gasta,
quando gasta a calçada.
finalmente, inscrever a cidade.
finalmente, inscrever onde?, sobre que plataforma?
não tenho definição. o que é a cidade?
finalmente, inscrever onde? sobre que terra? s. d’o.
15.7.06
sentido(s). ao clamar to infinity, and beyond!, buzz lightyear constitui-se como uma das vozes de consumação da modernidade. 3.
14.7.06
ventos de lautréamont
a terra era em sépia. e ele,
com voz grave, disse-lhe
não demores a olhar a terra.
sobrou silêncio entre eles, não
cumplicidade. e ele acrescentou
o tempo não estanca. aliás,
o tempo não existe.
o tempo?, mas que tempo?
ele não explicou. apenas disse
sei que a soma de todos os ângulos
define um corpo... todos os ângulos?,
um corpo? e, para o corpo - o definiendum -,
cada ângulo - enquanto definiens - é
como uma lâmina. s. d’o.
13.7.06
o cerco e a tormenta. a escrita é o último dos demónios rendidos que a mão acorda. 3.
imagem © giacomo balla - paesaggio + temporale (1915)
12.7.06
urbanocturno
começou o crepúsculo, levantaram-se as luzes da cidade,
luzes brancas, eléctricas, metálicas, acrescentando
a natureza de um outro modo de noite.
depois vieram anjos. vieram vampiros. e as pálpebras
permaneceram acordadas, máquinas sem morte.
vieram ruídos. vieram estranhos. e os corpos
tornaram-se demorados, simultaneamente caminho
e desvio. perdi-me aqui. s. d’o.
11.7.06
da infinitude. sobre o infinito deve perguntar-se onde é que começa? ou quando é que começa? 3.
10.7.06
o caso
o caso é estranho, foi assumido. por isso
aqui reúnem-se hipóteses, não respostas.
porque há uma inquietude ininterrupta
e uma frase que, a néon, desenha a mensagem
isto é apenas uma lâmpada.
porque a espessura nocturna seduz
para o incêndio.
porque a partida é o precipício
antes do regresso.
porque o desamparo é uma tentantiva
de liberdade.
porque depois das mãos, as dela,
é o pélago. s. d’o.
8.7.06
da metodologia. o método é um modo de disciplina aplicado ao processo de produção, captação e manipulação de matérias e informações, sob um objectivo enunciado previamente. 3.
7.7.06
atelier de insânia
não sei que edifício era aquele. recordo corpos vagos,
sem silhueta nítida, encontrados consigo, provavelmente
já em fase de ressaca acesa. recordo o corredor,
todas as portas abertas, excepto uma, o segredo.
havia também uma escada de pedra, alguém deitado
sobre um dos seus degraus mais largos.
que disse a memória desrespeita-me e chorou.
que disse há um vazio naquela sombra e apontou.
que disse dói-me e ninguém cuidou.
recordo que ocasionalmente a mesma voz variou o tema
e disse sou também um guia de círculos.
recordo mais corpos vagos, a saírem da porta
que, antes, vi fechada. recordo o cheiro do sal.
recordo o sabor do limão. recordo a insistência
dói-me, dói-me, dói-me, gritada, e, entre os outros,
eu também, ninguém capaz de se comover.
chegou o momento em que fechei os olhos.
recordo que comecei a duvidar de mim e
a satisfazer-me com essa dúvida, como se compelido
por uma necessidade de, ao contrário, decompor
até à composição a minha presença ali. nenhum encanto.
nem sonho nem vontade. ausência?, talvez.
já não havia gelo. gin também não.
a falência surgiu condição. corpo falido.
alcancei a escada e subia-a, para sair dali.
senti pisar uma sucessão de céus.
senti pisar uma mão perdida no chão.
foi a última vez que ouvi dói-me.
quando saí, saí calado. mas com o mesmo destino.
regressar. s. d’o.
6.7.06
5.7.06
ofício de suicida
sobre a terra é a vida e a morte,
os modos da sua confirmação, assim,
com estes dois versos, terminou a canção.
sob o silêncio posterior, ela afastou-se.
afundou as mãos na água, como se tentasse
conformá-las a uma matéria estranha. e
imaginou um método de definição e
classificação da terra que, naquele
instante, começou a trabalhar. s. d’o.
4.7.06
entre luas. saturno é o sétimo degrau da escada até ao empíreo, onde, nos seus passos, entre contemplativos, houve beatriz sem sorrir. 3.
3.7.06
carrossel lógico. a velha estava entretida a desfiar um rosário de pétalas e, enquanto isso, observava as crianças e as suas brincadeiras. embora ouvisse mal, a velha não compreendia o motivo por que anunciavam repetidamente mais uma corrida, mais uma viagem, neste fantástico carrossel. não conseguia compreender o significado de mais uma corrida, mais uma viagem porque, no seu entendimento, um carrossel mais não era do que um pião enorme a girar figuras, dentro das quais ou sobre as quais havia gente. ali, porém, as crianças estavam entretidas apenas com um triciclo ao qual faltava uma roda. por isso indagava a velha se, assim sendo, seria exacto chamar-se triciclo a um triciclo apenas com duas rodas. as crianças, essas, mais uma corrida, mais uma viagem, neste fantástico carrossel, continuavam o seu circuito animado, trotando a máquina, híbrido entre o triciclo e a bicicleta, como se fossem cavaleiros. mas não eram. e isso a velha sabia. pois um triciclo sem uma roda não é um cavalo. um cavalo tem quatro patas. s. d’o.
1.7.06
da unicidade. aquilo que é único é aquilo que decorre de uma conjugação ou intercepção singular. 3.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).