iii. contágio, não transparência. o que começa depois do princípio é por contágio profano. diz-se suficiente a tangente das bocas, o sopro, o coração. o limite é o beijo, a carne encontrada, a última composição da noite.
foi quando, um dia, a porta da carruagem do metropolitano se fechou que ele começou a estancar os sentidos. jogou-se no tabuleiro do xadrez das paixões e, porque solitário, decidiu ser escritor de canções.
escreveu uma canção de amor, com o título carrossel para frankfurt am main. assim,
para frankfurt am main. assim, o domingo é um dia sem deus. ao domingo são alimentados os fantasmas e os mártires. ao domingo somos o engano. e os enganados também. e os enganados também. tudo é banal, o bem e o mal. e, tu, és femme fatale. e os enganados também. tudo é banal, o bem e o mal. e, tu, és femme fatale. e, tu, és femme fatale. sem o murmúrio, mon amour.
levitação de meia noite. pétala de pátria em adolescente. saturno nocturno. se te amo, nunca. nunca mais. somos fatais. e imortais. nunca mais. somos fatais. e imortais. tudo é banal, o bem e o mal. e, tu, és femme fatale. nunca mais. somos fatais. e imortais. tudo é banal, o bem e o mal. e, tu, és femme fatale. e, tu, és femme fatale. sem o murmúrio, mon amour. s. d’o.
ii. às vezes, o quebranto, mas não a falência. as palavras caladas, sim, mas caladas porque vivas.
às vezes, o quebranto.
no quebranto, foi o amor o que ele calou. não disse senti a tua falta, mas sentiu o que corresponde a essa sentença.
nenhum anjo crioulo. nenhuma língua capaz para a fuga. são erros do mundo. mas as flores fluorescem e os relógios, na sua demora, continuam a compassar o ritmo das voltas.
mesmo que deus não exista, podemos. somos o ser e, nele, o tempo.
mas no quebranto, foi o amor o que ele calou. não disse senti a tua falta, mas sentiu a sua ausência. e escreveu, fazes-me falta, fazes-me falta no poema. que a minha vida não é. s. d’o.
i. o que pode dizer-se? que não repita uma oração. o que pode fazer-se? que não seja já obra.
vozes. uma maçã no escuro. dois, três, quatro passos. um outro, mais. seis, sete. após, acontece o silêncio.
lá fora, ergue-se o vento. rasga entre o empeno da porta. dentro, um corpo quieto, encostado ao medo, purga a dor. o televisor está desligado. surge a dúvida.
as vozes, em coral, exiladas numa melodia nocturna. as fragas e os medos. o movimento sem aparência astral. sucediam-se os lotes de instantaneidade, os estandartes torturados, o sangue da paz. sucediam-se no terraço da esplanada, sucediam-se no escritório. no corpo dele também, o domicílio de todos os lugares.
domicílio de todos os lugares. de tudo isso quis fugir joão artur. e fugiu.
ausente, o que sou?, perguntou ele. és senhor de ti, o teu próprio domínio, respondeu-lhe a mais autorizada das vozes, a voz do seu contratante. ouvido isto, joão artur pegou numa caneta e, como último parágrafo de uma folha, lavrou c’est le feu que si relève avec son damné. era a sensação de repetir henrique, mas sem a hipótese de margarida, o resgate do amor.
quando o pano caiu sobre a cena, a tragédia não terminou. dela não era possível a denúncia.
a denúncia. e continuou. cravada na mesma carne. posta na mesma narrativa. s. d’o.
(“c’est le feu que si relève avec son damné” é a última frase de “nuit de l’enfer”, parcela de une saison en enfer, de rimbaud).
se houvesse um pessegueiro na ilha. sob o capítulo dos medos havia uma janela bucólica, marcada com uma insígnia branca. sob ela existiam duas palavras, espiral e norte. naquele lugar, se acontecesse haver, a sombra não era adorno da paisagem, era apenas uma sombra. ali as pessoas chegavam lentamente. depois sentavam-se num círculo e esperavam a noite. durante essa espera o seu corpo era levado e envelheciam. havia nesse envelhecimento uma invisibilidade que jamais foi verificada em qualquer outro processo semelhante. as pessoas envelheciam tanto que começavam a falar línguas mortas, do tempo da inauguração do mundo. a caligrafia, essa, era mais difícil. por isso, no ofício da escrita ninguém se aventurava. as pessoas, sentadas num círculo, limitavam-se a murmurar repetidamente a mesma oração. e a envelhecer, até ultrapassarem o respectivo nascimento. nesse momento, o círculo crescia e, ultrapassando todo o espaço, deixava de ser uma forma perceptível. nesse momento, a janela bucólica fechava-se. começava a noite. começava outro e o mesmo mundo. s. d’o.
ontologia. o ser, sentido, é necessariamente pela respectiva sensação. ou seja, o ser, sentido, é redundante, no próprio e exacto termo em que um continente se reporta a si-mesmo, por nenhum outro território, corpo, ser assim habitado. 3.
peregrinação. um erro só se percebe acontecido. antes é apenas uma hipótese, um temor, nunca uma canção. vou?, vens?, ficamos?, são interrogaçõess demais, sob esta temperatura. verão, dizes que é. também poderia ser outono, se admitíssemos. wasted and wounded, it ain’t what the moon did i’ve got what i paid for now see ya tomorrow, hey frank, can i borrow a couple of bucks from you, to go... vamos, se o plural, um, dois, chega, se confirmar. um gin tónico, se faz favor. outro. waltzing mathilda, waltzing mathilda, you’ll go waltzing mathilda with me. e depois?, se depois. os mesmos lugares?, os mesmos gestos?, as mesmas palavras?, a mesma dança?, sem segurar o copo na mão. i’m an innocent victim of a blinded alley and i’m tired of all these soldiers here no one speaks english, and everything’s broken and my stacys are soaking wet... não é possível esperar mais. esperar é prolongar o engano, o logro, permiti-lo sempre, futuro também. é necessário resistir, voltar, prosseguir. continuar. vamos?, pergunto-te, calando a vontade de ficar, permanecer naquele chão, naquele terreiro. to go waltzing mathilda, waltzing mathilda, you’ll go waltzing mathilda with me. saímos. verdadeiramente não saímos. tu ficas, guardas-te. eu também. fico. para ficar contigo. deixamos ir os corpos, ficamos para trás. mas os corpos não vão. now the dogs are barking and the taxi cab’s parking a lot they can do for me i begged you to stab me you tore my shirt open and i’m down on my knees tonight old bushmill’s i staggered you buried the dagger in your silhouette window light go to go... este é o caminho das águas, o teu testemunho, o teu princípio. as mãos, as nossas mãos, não se encontram. por que não abranda a tua vingança? por que nos aproximamo-nos da distância?, o lugar de onde todo este caminho nosso se observa. waltzing mathilda, waltzing mathilda, you’ll go waltzing mathilda with me. não hesitas, segues. o meu corpo também. estou fraco, confirma-se o meu ser. confirma-se o ditado que a sibila extraiu do oráculo. mas vou no teu encalce. foges?, penso a interrogação para mim, sem encontrar resposta. algo protege este caminho. disseram-nos, quando passámos sob os arcos, que era seguro guiar por caminho. segues, és a tua custódia. eu apenas te persigo. vacilo, estremeço, anuncio a mim mesmo a queda. a minha. atrás de ti. now i lost my saint christopher now that i’ve kissed her and the one-armed bandit knows, and the maverick chinaman, and the cold-blooded signs and the girls down by the strip-tease shows go... recordas a nossa infância?, a inocência que roubávamos? recordas a nossa juventude?, os audazes ímpetos?, a paixão que lavrávamos? tens uma memória vaga... vais por aqui? é por aqui que queres ir? não, não sei se este rumo é um ardil. talvez seja. não conheço este território. não é o meu peito. também não é o teu. waltzing mathilda, waltzing mathilda, you’ll go waltzing mathilda with me. o que te leva não te leva para mim. está bem, hoje acampamos aqui, neste bosque. será um acampamento com cautela. podes dormitar nos meus braços, se quiseres. deixá-los-ei em sentinela. dispostos às armas, à defesa, caso seja necessário. amo-te, já te disse?, já te repeti esta certeza? durante a campanha em que vamos. agora dorme, descansa. no, i don’t want your sympathy the fugitives say that the streets aren’t for dreaming now manslaughter dragnets and the ghosts that sell memories they want a piece of the action anyhow go... os lugares que nos cercam estão em silêncio. o fogo também dorme. não temos mais companhia. os vultos que nos vigiam são de vento. vêm do litoral e procuram as muralhas exactas para se confortarem. ouves?, transportam ainda o marulhar. repousa, nada tens a temer. estes sulcos protegem-nos. e a lua, nestes baixios, não se deixa enganar com os ecos do mar. toma os meus braços. toma o meu corpo. ele ainda tem a tua forma. waltzing mathilda, waltzing mathilda, you’ll go waltzing mathilda with me. ateia-se em mim a morte. lavar as feridas é já sorte. sobre o corpo o linho que será a minha mortalha. abre-se a terra. o sangue já não escorre. sobe o fumo. depois desperto. o espírito tinha sido quebrado com o corpo, no sono. olho-te, sou o vigilante da tua vigília. ainda a lua não desceu ao seu funeral. tudo ainda acontece lento. and you can ask any sailor and the keys from the jailor and the old men in wheelchairs know that mathilda’s the defendant, she killed about a hundred and she follows wherever you may go... quando te trespassa um sopro de vida que te vem de dentro, acordas. mal erguida, brandes a energia dos levantados e precipitas os passos. sigo-te, procuro-te. insisto em devolver-me a ti. waltzing mathilda, waltzing mathilda, you’ll go waltzing mathilda with me. mas vais já longe, para além do meu alcance. toco-te apenas com a palavra que posso no instante. não te escondes. vejo-te apenas a aproximares-te de mim. porém não sei se regressas. pode ser uma ilusão. pode ser o que acontece. and it’s a battered old suitcase to a hotel someplace and a wound that will never heal no prima donna, the perfume is on an old shirt that is stained with blood and whiskey and goodnight to the street sweepers the night watchman flame keepers and goodnight to mathilda too. mas é estranho que numa peregrinação, como esta, o reencontro comece com alguém, um de nós, a pronunciar a palavra adeus. s. d’o.
(este texto é interceptado pela letra de “tom traubert’s blues (four sheets to the wind in copenhagen)”, canção escrita por tom waits e originalmente editada no álbum small change).
urbacidade. uma cidade é um plano onde os corpos se encontram não por necessidade, mas por probabilidade – probabilidade decorrente da densidade corporal. daí que a primeira condição da felicidade dos urbanitas seja a recodificação dos toques, dos roços acidentais em encontros úteis ou significantes. a natureza apenas encontra o remanescente. 3.
é tempo de oração. sente-se a paisagem branca a replicar. o sol acende-se mais, num último fulgor de luz. os corpos convergem, atraídos pelo chamamento do minarete. a esplanada da mesquita enche-se. depois, o silêncio.
mesquita enche-se. depois, o silêncio. é o mundo a acontecer dentro de si, em surdina guiada contra deus. algures, indiferente, o mar aproxima-se. e vai. talhando uma sede. s. d’o.
realeza. “há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua”, é uma frase do livro do desassossego. há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua... reportada ao respectivo contexto, percebe-se que o que está em equação nesta frase é menos a realidade das metáforas do que a irrealidade da gente que anda na rua. o que é matéria suficiente para o sossego. 3.
incesto de fome. não há noite. não há vento. talvez seja o retorno à infância. talvez seja a fronteira possível do que é. não há eira. não há pão. talvez seja um jogo. talvez seja nada. não há remorso. talvez a luz seja uma armadilha. talvez seja a inocência. talvez seja a morte guardada na espera. não há medo. não há suspiro. não há morte. não há tempo. talvez seja assim. s. d’o.
mundanidade. o tempo também se revela no horizonte do ser? é com esta interrogação que heidegger encerra sein und zeit. o enunciado interrogativo pode considerar-se ontológico. mas, traçado na oportunidade em que foi, justamente no remate do livro que pretendia responder à pergunta o que é o ser?, é também um enunciado irónico. 3.