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almanaque de ironias menores

caderno de exercícios avulsos e breves, por serôdio d’o. & 3ás 

31.8.09


pátria

uma noite de verão, o fogo, o fogo autêntico, que lavra
e galga como um sopro que transporta o ruído ardente
sobre a seiva e o manto vegetal, vejo-o através do televisor,
a avançar num lugar cavado na minha infância, na memória
remota de que aquele lugar que arde talvez tenha sido meu,
íntimo, nosso. ainda incrédulo, reconheço os limoeiros,
as laranjeiras e a figueira. as ruínas da adega são nítidas,
estão no sítio onde as imagino e onde as procuraria, se,
por algum motivo, tivesse que as procurar. e subitamente,
no meu ócio nocturno, estacionado em estupor, entra o ofício
do tempo que segue e que me devolve à origem, àquele chão,
ao horto, ao pomar e à casa que julgava já não existirem
há muito tempo, onde estagiei a carne e a vontade de fugir
tantas vezes. sinto agora, aquele lugar já teve um corpo
que não o mereceu, que não o podia ter merecido. no fogo
vejo o remorso que nunca consegui. nas cinzas vejo tudo
o que prometi. s. d’o.

referência

21.8.09


tuvalu (excerto xi)

do mundo?, são muitas as necessidades para resolver com urgência.
é preferível esperar. mais cedo ou mais tarde acontecer-nos-á
a memória e perceberemos que os nossos movimentos foram precipitados.
podíamos ter esperado, o mundo continuou, como se a nossa ânsia
nada tivesse acrescentado ao estado, como se o mundo fosse condição
de si e incondicional, abrangente e suficiente.

não falo do tempo arrastado na pele, como cálculo subcutâneo e sucedâneo
das esperas. ninguém é eterno, já ninguém aspira a demora tão desmedida,
apenas aspiramos à inveja. os animais respiram e enfrentam rapidamente
o que pode ser culpa deles. não esperam, atacam. desconhecem a anestesia,
sobrevivem sob a pressa. não esperam, não podem esperar.

a vida já não é uma questão de código postal. permanece a margem,
o alcance também. s. d’o.

referência

19.8.09


tuvalu (excerto vii)

pela conversa e pelos murmúrios inaugurávamos a noite
e, devolvendo-se, ela construía-nos. aprendemos a instrução
dos crepúsculos assim, acompanhando o prolongamento dos dias
e as trocas deles. isto, pode dizer-se deste modo, é memória,
substância de uma espera que não esperávamos conseguir tão cedo.
mas a guerra altera as regras e as coisas.

não se compara a morte a um contrato social, a um pacto
entre cada um de nós. s. d’o.

referência

17.8.09


tuvalu (excerto iv)

havia muitos fantasmas à volta do corpo, recordo-me desse facto.
deixei de sonhar com ela por causa disso. a beleza provoca-me insónias,
os fantasmas distraem-me.

a margem estava demasiado próxima. a felicidade residia ali,
não além. como estava habituado à normalidade, eu via
fantasmas, não podia ser perfeito. ninguém é perfeito.
a margem estava demasiado próxima e o nível do mar subia.
há coisas que não se continuam a ver nestas circunstâncias.
o meu propósito devia ser alcançar a margem, salvar-me,
pelo menos tentar, fazer um esforço nesse sentido, mas eu permanecia

estranho para mim, tão quieto quanto a margem. era suposto que não
fosse assim, era suposto que fantasmas e normalidade não combinassem.
porém uns e outra concordavam de tal concórdia resultava uma ausência
maior do que a que era costume. a margem, a perfeição, quase o outro
lado, nunca aspirei a ela. a morte espera-me há muito tempo. s. d’o.

referência

7.8.09




a importância de respirar, uma obsessão
das e dos amantes e de quem espreita
pelas fechaduras. s. d’o.

referência

5.8.09




um poema mata ou é subúrbio súbito, uma tarde
numa pastelaria a ver os comboios da linha de sintra
a passarem em ambos os sentidos. s. d’o.

referência

3.8.09


canção de olvido

trazemos os lugares que nos solicitam. partilhamos
o auxílio à morte, a hemorragia das horas e das dobras
através da qual o calor nos faz próximos da terra, filhos
dela. chegados, temos o desejo de tombar à sombra,
no vazio que dá ocupação ao corpo e o resgata.

postos na posição geométrica transportada, o ritmo da lucidez
é o do contraste, a luz. a sombra, que traz também a atenção
às coisas, não traz a contemplação, não é o dispositivo
de conformação às coisas. depois falamos de heróis e esquecemos
o caminho percorrido.

o espírito revolucionário é uma ligação à posteridade, que revela
o princípio mais do que o fim da tendência. a revolução não é
e não tem memória, é a animação de uma intenção. que fazer?,
a memória é um problema antigo. aqui, exactamente aqui,
o que há nela é património?, rumor de quanto se preserva,
ou é perda? s. d’o.

referência

2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).