pátria
uma noite de verão, o fogo, o fogo autêntico, que lavra
e galga como um sopro que transporta o ruído ardente
sobre a seiva e o manto vegetal, vejo-o através do televisor,
a avançar num lugar cavado na minha infância, na memória
remota de que aquele lugar que arde talvez tenha sido meu,
íntimo, nosso. ainda incrédulo, reconheço os limoeiros,
as laranjeiras e a figueira. as ruínas da adega são nítidas,
estão no sítio onde as imagino e onde as procuraria, se,
por algum motivo, tivesse que as procurar. e subitamente,
no meu ócio nocturno, estacionado em estupor, entra o ofício
do tempo que segue e que me devolve à origem, àquele chão,
ao horto, ao pomar e à casa que julgava já não existirem
há muito tempo, onde estagiei a carne e a vontade de fugir
tantas vezes. sinto agora, aquele lugar já teve um corpo
que não o mereceu, que não o podia ter merecido. no fogo
vejo o remorso que nunca consegui. nas cinzas vejo tudo
o que prometi. s. d’o.