30.3.09
dizes todas as coisas e eu, sem saber o que dizer-te,
talvez até distraído, fico a pensar que todas as coisas
são muitas coisas. s. d’o.
20.3.09
tecno finale
realismo humano. não entendo a expressão e o que significa,
parece-me um oxímoro. antigamente havia quem defendesse
que a reflexão resultava em ilustração e que a ilustração, pólvora
pura e prática, emancipava, permitindo às pessoas realizarem-se
e realizar o mundo consoante uma vontade melhor. uma vontade
melhor, esta é a colheita do horto, a última. entretanto, conta-se
sem pesar, a teoria crítica morreu. agora o que interessa a todos
e a cada um é a consciência de que habitam o menschenpark
e que podem decidir não sobre a própria condição e o que são,
mas sobre o que, por herança ou ultrapassagem, lhes sobrevirá
e estabelecerá a condição das condições novas. a vida continua
a atrasar-se. e esta, a realidade ser rectificada, é a esperança.
para ser sincero, interessam-me pouco as querelas deste teor.
estou a ler melville e poe. às vezes, por asseio ainda moderno
e a mesma ânsia, leio ginsberg. tento chegar longe, a outra margem
e a outro lugar do tempo. a minha américa é estranha e antiga.
estou aqui, numa língua presente, à distância da tradução.
e depois?, se depois. depois interessa-me a alta definição combinada
com a alta fidelidade, sob controlo remoto. domino o mundo, o modo
como se revela, sentado no sofá, trono para um corpo só, lugar que,
na sala, define a posição melhor diante do ecrã. show, o meu reino,
sou senhor sem alta finança. aqui, na minha mão, seguro, está o posto
de comando, o mesmo que ground control. as imagens e os sons
obedecem-me. não domino a emissão, domino a exibição. sou um deus
final, terminal.
como todos, há muito tempo que sei que o major tom é um junkie. s. d’o.
18.3.09
psych folk, xi
amanhã vou regressar ao plano da queda. não vou deixar as coisas
arrumadas.
levarei comigo dúvidas maiores, que aprendi entretanto. agora
as minhas dúvidas são as dos nomes. por que é que se chama
terra à terra ou noite à noite? por que é que o pedro se chama pedro
e por que é que a inês se chama inês? são dúvidas que consegui
devagar, na folga dos amanhos da terra, da reparação do arado
e das esperas das mulheres que voltavam da lama ao fim da tarde.
no entanto são dúvidas sem aparato. neste momento interessa-me
pouco a gramática. estou cansado de dizer adeus às coisas
pequenas e basta-se a sensação da fadiga para que eu perceba
o motivo por que não quero deixá-las arrumadas.
ao afastar-me deste lugar, quero sobretudo preservar o mapa
dos nomes das mulheres e dos homens que ficam para, por contaminação
e para indicação, continuarem a habitá-lo na carne sua, margem
cálida e madura, que é para a terra. sei que amanhã vou regressar
sem respostas novas. talvez seja melhor assim, levar saudades diferentes
e a incerteza sobre o modo como as coisas aconteceram, se aconteceram. s. d’o.
16.3.09
psych folk, x
aqui a arte de alvenaria é ainda sem andaimes
e sem guardacorpos. as edificações são baixas
por causa disso e da contribuição autárquica
que agora tem outro nome. habita-se em casas
pequenas porque ninguém aspira a crescer em chão
que não foi dado por deus, mas foi feito pelo artifício
da mão de obra.
para subir mais alto, aqui é suficiente a ilusão
do amor, como a do pedro, sentado no rebate
da porta da sua casa, a recordar a inês a fumar,
ao mesmo tempo que com os dedos reconta o cadastro
das vezes que a encontrou morta e, mesmo assim,
a esperou. o amor é isto, o que chega depois de três,
quatro cervejas, a afeição que, porque amarrada
a uma presença, não consente a morte ou a perda.
o que é da terra fica na terra, esta é a memória. s. d’o.
6.3.09
psych folk, ix
quebra ou cessa o corpo e no mesmo instante
evapora-se o espírito que havia nele, disse-me
o velho, porque as coisas telúricas são assim,
ligadas à terra, com a eternidade que a terra empresta
ao corpo e nenhuma mais. o que semeias, o que regas,
o que mondas, o que ceifas, o que colhes, tudo é em vão
no tempo longo da terra. chegas ao fim dos teus trabalhos
e a terra continua a não reconhecer-te. a terra engole-te
apenas para te entregar aos bichos e, depois, tu desfeito,
para alimentar-se de ti. meu rapaz, a terra não poupa gente,
usa-nos como uma mulher usa os cremes e a maquilhagem,
para sentir-se mais bonita. a terra não poupa gente,
come-a. por isso, o conselho que posso dar-te é este:
foge, rapaz, foge. não te iludas a ver as mulheres
que regressam da lama. elas são amantes da terra,
preparam os homens para ela, primeiro para o calvário,
depois para a sepultura. foge, rapaz, foge. foge
enquanto a tua demora aqui é breve, foge
enquanto restam esperança ou dúvida suficientes
em ti. a lama é a terra em virago. s. d’o.
4.3.09
psych folk, viii
na última discussão, ele era já velho e disse
isto: lavrei a terra, jeiras e jeiras, convencido
de que necessitava arrancar dela o fruto para viver
e dar sustento aos meus. afinal limitei-me a amaciar
o chão, a cavá-lo e abri-lo para ser a minha sepultura
e a casa derradeira deles também. foi demasiado tarde,
sem a assistência de deus, que percebi o plano final,
a minha condenação. ter-me-ia bastado a contemplação,
se a salvação nunca foi e não era para mim. sinto que,
mais do que ter sido enganado, me enganei. s. d’o.
2.3.09
psych folk, vii
é do hábito, mais do que da tradição. limito-me
a usar as palavras, lançando-as tão longe
quanto a minha mão destra consinta. em menino,
parece, tinha inclinação para a canhota, mas,
depois, com rezas, promessas e lições, comecei
a escrever com a mão direita. já disse?, é com ela
que lanço o que escrevo tão longe quanto consigo.
oxalá as palavras não tenham dentro alguém
que eu desejo perto de mim. as palavras fazem-me
falta por causa disso, aproximam-me do que não desejo
afastado ou perdido. declaro por escrito e parece
que a declaração deixa ao meu lado tudo o que contém.
não sei se a escrita é uma espécie de geometria
sem desenhos. mas talvez seja. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).