31.10.06
30.10.06
elegia de um exílio
os olhares que amamos, quando
amamos, são todos. até à renúncia. s. d’o.
28.10.06
riso e choque frontal. no limite da ironia, saber é saber que sabe-se lá e, ainda em relação a isso, admitir a dúvida. 3.
27.10.06
exílio
naquele lugar, tão esforçada a sua voz,
negou a confiança. do louvor acreditou
os vinhedos e os altares, património que,
de trás, trouxe consigo na memória. ali
não havia aposentos cómodos.
sem demora, consumiu a ameaça. prometeu voltar.
porém, com vontade soberana, entornou o cálice
das vésperas, adiando a partida. os dias tardando,
ficou. a distância era já o princípio do regresso. s. d’o.
26.10.06
modos de porvir, ii. o futuro é uma plataforma de resistência. começa antes de si e prolonga-se em si. no limite, em toda a extensão, mesmo desde antes, o futuro é a eternidade. 3.
25.10.06
passagem para o exílio
várias casas. aquela era a última,
tão derradeira e afastada quanto a última
casa do mundo. adiante era além, extensão
por uma linha que parecia entrar e ultrapassar
o horizonte.
o que parecia, porém, permanece conjectura apenas.
ali começava o que era longe, a frenteinabitada.
pelo caminho, que tangia a casa, chegavam
os hóspedes ocasionais. muitos chegavam
sem mantença, com as orações esgotadas.
a fome trazia-os crus e mensageiros
de penhor eterno de um credo. caíam
sob a sombra e, por repasto, satisfaziam-se
com o dulçor da polpa das maçãs. acreditavam
e queriam acreditar.
mãos de versos áticos acolhiam o fruto
e passavam-no aos hóspedes. esse gesto
findava a comunidade. os recém chegados
saciavam-se e prometiam partir. nunca
alguém cresceu ali.
o trabalho de calcorrear aquele caminho
levantava os corpos. pelos passos compreendiam
a solidão e dirigiam-se para a sua confirmação.
o silêncio transportava-os, face a face,
para si. sempre acordados, hausto para
o demónio os tumultuava, separavam-se
por categorias do zodíaco. era uma tentativa
vã de, assim, se repararem.
os hóspedes chegavam e partiam. o silêncio,
como prelúdio, era a sua aproximação. nenhuma
vizinhança demorava. e à única proximidade
certa e permanente, os abutres, os que chegavam
chamavam anjos da guarda.
quando partiam, para o regresso, conduzia-os
já a lição dos perdidos. haviam aprendido
a calar-se e calados iam. primeiro por vício,
depois por hábito. s. d’o.
24.10.06
things are going to slide, slide in all directions
won’t be nothing
nothing you can measure anymore. *
won’t be nothing
nothing you can measure anymore. *
modos de porvir, i. o futuro manifesta-se por várias formas. uma dessas formas é a urgência que nos habita e compele para além do gesto, ao acto. 3.
* estes versos são parte da letra de “the future”, tema incluído no álbum the future (sony music, 1992), de leonard cohen.
23.10.06
capítulo e ouvidoria
andava para diante e para trás na rua,
segurando uma telefonia. ao mesmo tempo
que ouvia chet baker dizia, uma mão lava
a outra e assim por diante. ninguém entendia
o que aquele homem fazia ou dizia e houve quem,
sem certeza, o julgasse louco. mas se não há certeza,
disse o julgado, aceitam-se apostas. s. d’o.
21.10.06
20.10.06
missão
os pulsos são para dilacerar. sobre
os seus destroços devem ser soltas flores
ou outra qualquer matéria vulgar.
o que se pretende não é estancar
ou reconstituir o sangue, mas tão só turvá-lo,
torná-lo baço.
portanto, que dos actos simples não se espere
a cura. a simplicidade é uma promissória.
o sangue é o que escorre. s. d’o.
19.10.06
da proclamação da verdade. para que se proclame a verdade, é necessário encontrar a evidência com o panorama, revelar o caso no enredo. 3.
18.10.06
apontamento, ii
já não volta aquele tempo. para que
voltasse, seria necessário ir adiante. s. d’o.
17.10.06
dos monstros. os monstros são a forma do limite ultrapassado, porém percepcionada do lado anterior à ultrapassagem desse limite. pelo que é por tal percepção que, em nós, tende a conformar-se o conceito e a sensação de normalidade. 3.
16.10.06
14.10.06
13.10.06
elementos
o timbre áspero, as sombras consistentes, batidas
e apertadas com paciência. as sendas pisadas,
chão sob os passos. os santos, os anjos, o recúo da noite,
o deus oblíquo e os relâmpagos. a espontaneidade,
a prevalência de um símbolo único na equação e na fórmula.
a natureza. os casos, os acasos, os ocasos. a penumbra
e o tigre, como se se amassem na mesma página
e não conseguissem esperar o próximo encontro.
a alquimia, o ciúme, a ciência. o bem, o sangue,
o palco, a imagem e o som. a vigésima quinta hora,
a espera, o avanço solene. e, por fim, o contrato
de promessa sobre o silêncio, firmado em película
e carne de culpa. a redenção começou aqui. s. d’o.
12.10.06
dos problemas. qualquer problema é passível de ser reduzido a ortografia. o que significa que qualquer problema, sendo ortografado, também é passível de ser erro ortográfico. 3.
11.10.06
aguarela, i
concentrada, decompunha a tapeçaria,
amparando o seio esquerdo, precipitado,
com a mão. tinha o cabelo de solto,
caído sobre os ombros e a blusa. ao lado,
em cima da mesa, havia uma maçã trincada. s. d’o.
10.10.06
da ciência. a ciência é um exercício demorado de despiste dos estorvos ao encontro da contra-intuição com a evidência. 3.
9.10.06
ensaio de demiurgia. entre uma casa e outra havia um caminho. porém, excepto por casualidade, ninguém o usava. como o paraíso estava próximo, os homens erravam por ali consoante a vontade, vagamundos, nómadas, soltos de ir e de vir. todo o chão lhes servia caminho. foi aí que pela primeira vez os homens se transformaram em sentinela. todos, cada um por si, se converteram em esconderijo e olhavam os outros com suspeita. olhar tornou-se um vício e um modo de intimidade. até que um dia os homens inventaram as palavras e começaram a falar. ora acontece que, para se entenderem, porque cada um inventara e usava palavras suas apenas, os homens sentiram a necessidade de inventar um ponto de encontro. como entre uma casa e outra havia um caminho, passaram a encontrar-se aí para conversarem. e ao caminho, aquele, chamaram lugar. s. d’o.
7.10.06
exercício de escala. na natureza, como na geometria, há uma ordem entre as grandezas do que é continente e do que é conteúdo. é propriedade das grandezas alimentarem-se de outras grandezas, porém menores. 3.
imagem © pieter brueghel (grandibus exigui sunt pisces piscibus esca)
6.10.06
a espera
quando lhe perguntaram e a omnipotência?,
ele respondeu não sei, apenas sei que foi
uma vida cheia de xeque-mates e que perdi
no último lance.
pulsava-lhe a culpa nas veias. crescia-lhe
a avidez e o enigma. e nunca adormecia,
não obstante a derrota. dizia que esperava,
continuava a esperar, a apoteose. s. d’o.
5.10.06
para além de darwin. ser capaz de voar, ser capaz de respirar debaixo de água. ser mais do que ícaro logrou ser, ser como um peixe. há um desejo que nos transcorre, a fuga, a diferença, a conquista. ser meta é a extensão que procuramos como espécie. geração sobre geração, sobrevivemos sendo o que não somos. 3.
imagem © tim burton (do filme big fish)
4.10.06
a vida é um workshop
angariei peças de nojo, que arrumei
certas, sobre um naperon rendado.
não havia motivo para as esconder.
então, eu era liberal e concedia aos outros
o que me arrogava. por isso, comunguei
as peças. depois transformei-me
em devoto.
eram outros tempos, esses. as mãos limpas.
as gengivas tumefactas, os dentes cariados.
nenhum cuidado especial. para agora,
são muitas as diferenças em relação a esse antes.
exemplos? por exemplo, lenços para assoar,
quem ainda os oferece? e, de um homem feio,
o que interessam os rins? de um homem mau,
o que interessa o fígado? e, sim, sei.
fumar?, fumar só lá fora. s. d’o.
3.10.06
oceânica. olhando-se o mar, porque há na sua textura e na sua dinâmica um conjunto de propriedades que fazem o olhador sentir-se estranho, configura-se um desafio. o olhado do mar é, aliás, uma das percepções mais imediatas do limite da condição humana. e da hipótese de conquista de plataformas originalmente avessas a essa mesma condição. 3.
2.10.06
solitude ensemble
gostava de brincar com impossíveis.
passava os dedos nas arquitecturas
frágeis do fumo, até tocar a estátua.
seguia os traços até à carne, envolvendo-se
demoradamente nas suas margens, como se, aí,
fizesse anotações de carícia e de perdão.
mais tarde, já homem, talhava, sob
o regime da forja, a próxima composição.
e essa composição repetia um salmo,
primeiro, e um hino, depois, na mesma
sequência lenta com que outrora perdera
os dedos sobre margens que nunca existiram.
persistiu nessa repetição até se sentir só
e admitir conhecer-se. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).