30.6.06
comício no horto, vii
e deus disse-lhes por fim, agora ide, ide e pregai
a minha palavra e o meu corpo e o meu tempo.
todos foram e tornaram-se carpinteiros. s. d’o.
29.6.06
28.6.06
comício no horto, vi
e deus disse-lhes ainda, eu sou a vossa prova,
porque sois pela minha vontade e
conforme a minha vontade. eu sou tudo
e sempre e, por isso, sou sobre tudo.
é isso que deveis temer, temendo-me. s. d’o.
27.6.06
26.6.06
comício no horto, v
e deus disse-lhes ainda, fazei fé no que vos enuncio,
pois eu sou a verdade e a verdade, em verdade,
é o que vos digo. s. d’o.
24.6.06
paixão pacífica. em from here to eternity, realizado por fred zinnemann, well, on the other hand, i’ve got a bathing suit under my dress..., disse karen, a esposa do capitão holmes, ao sargento warden. a onda que os cobriu e lavou o adultério veio depois. 3.
23.6.06
comício no horto, iv
e deus disse-lhes ainda, amar-vos-eis sobre tudo,
porque, por vós, sois e sereis por mim.
quando assim não for, será a minha ira
e, depois, o luto dos vossos. s. d’o.
22.6.06
persistência da memória. de la dolce vita, realizado por frederico fellini, o cânone tende a fazer recordar a cena em que, como se fosse um súcubo de acordados, ninfa, sylvia se banha na fontana di trevi, fazendo esquecê-la descalça, seca, a dançar sobre chão firme, mais demónio ainda. 3.
21.6.06
comício no horto, ii
e deus disse-lhes também, se disserdes aos outros
que sois apenas pelo vosso corpo e pela vossa força,
omitindo que sois por mim, abater-se-á sobre vós a infâmia
e, por ela, as vossas vestes serão o vosso opróbrio,
o índice da vossa miséria. s. d’o.
20.6.06
o corpo que tira o pecado do mundo. mary, realizado por abel ferrara, constitui uma variação cinematográfica sobre um mito do lastro civilizacional do noroeste. o facto de parte significativa da narrativa ser expressa por uma mulher que pergunta pelo seu lugar confere a essa personagem uma soberania apócrifa. ora acontece que a vida, quando sugerida assim, impõe-se realmente, como realidade e realeza, interpelação, não como ficção. 3.
19.6.06
comício no horto, i
desta farinha de mim virá a carne
e não o pão, disse-lhes deus. s. d’o.
17.6.06
16.6.06
interpelação divina
por que é que julgas que eu sou impossível?,
pergunto-te. espero que me respondas.
por que espero?, não sei. sinceramente, não sei.
sei que não me responderás, tu apenas perguntas.
mas sei também que há uma ressonância
nas tuas palavras que me convida a ser quem sou,
que me convida a ser mais dentro do espelho,
nem face a ele nem para além dele.
por isso continuo a interrogação,
por que é que julgas que eu, eu que posso tudo,
eu que sou a origem, eu que sou o tempo,
por que é que julgas que eu sou impossível? s. d’o.
15.6.06
da pátria. a pátria é um conjunto imaginário definido em termos compreensivos e que compreende exclusiva e inclusivamente um chão e uma paisagem particulares. 3.
14.6.06
naturezas
ao lado do pão, a fruta, que a lâmina espera.
o cântaro sobre a mesa, para encontrar os lábios.
o crucifixo na parede, adorno e amparo de almas.
as mãos a volver o cereal, enquanto as raparigas
fazem a roda. a terra áspera, gretada pelo sol.
a sombra sob as árvores. nenhum fruto caído.
as cantilenas soam. ouvem-se cigarras também.
a fome não se vê. a alegria é apenas uma cantiga.
mas há já quem olhe as raparigas e nos olhares trocados
não tenha tempo para sentir a privação.
porque, mesmo quando não há carne e é a fome,
é ainda a carne que sobressalta e dispõe à vida. s. d’o.
13.6.06
12.6.06
hemisfério de tempo
sem partir, renuncio aos murmúrios
que quedam na rebentação. procuro vozes,
clamores, não sopros vagos.
encontro a tábua das matérias. abro-a
e leio a primeira dissertação. sinto-me
trémulo. há palavras que vou descobrindo,
embora me seja tardio o seu sentido.
já não acredito no tempo liso, sequência.
e começo a imaginar o protocolo que regula
a dinâmica das ampulhetas e das clepsidras,
como se fosse a deslocação de uma carruagem
sobre o absoluto. imagino o tempo como
arrasto magoado, simultaneamente húmus
e tráfego, continuação. s. d’o.
10.6.06
reflexo(s). o espelho é um negativo instantaneamente revelado. daí, pela aparente ausência de mediação, a sua superior capacidade de engano. 3.
imagem © jan saudek
9.6.06
os dias do fim
estou aqui, paradeiro vago, à espera
do dia trinta e dois de dezembro, porque
não quero o fim e porque não concebo
o princípio como retorno. s. d’o.
8.6.06
7.6.06
vaudeville
sob o veneno, quase tudo, uma plenitude, a dança.
e o corpo mais falcão, mais leopardo, menos língua,
menos visão, movimento guardado. s. d’o.
6.6.06
da fotografia. a fotografia é simultaneamente a suspensão e a captura de um tempo, um instante, através da luz, não é uma imagem. 3.
5.6.06
além tejo casual
deste abrigo, a fadiga. o corpo enganado
e sedentário, em vontade nómada. a terra ocre,
autêntica, como se tivesse sido edificada
por um vento tenso, demorado. as noites longas,
sem escarpa, planas, herança de abandono,
trevas mornas para consolo tardio. o reencontro,
soa siouxie & the banshees. o regresso amanhã.
mas hoje, ainda espera, subsiste uma pergunta.
lá fora, ainda haverá tempo?, o mesmo tempo. s. d’o.
3.6.06
filhos de um deus menor. filhos de deus tatuaram um número em outros filhos de deus, como se fosse um acto de marcação de rebanho, burocracia divina. 3.
2.6.06
a última estação
quartos separados à nascença, ordem nova.
cospe melancolia. acredita em canções quietas, paradas.
como um pregador, que sabe que vai ser derrotado,
perde, porém não desiste. também não insiste.
resiste, apenas, mais vítima de submissão do que de depressão.
e acredita que os insondáveis trilhos de deus
são estes carris, cujo destino é o fim. s. d’o.
1.6.06
da vida orientada. como roteiro moral para a vida basta a convicção sobre a existência da natureza. aceder a um plano superior, à aventura, apenas exige um pequeno upgrade, a admissão da contingência aí. 3.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).