29.4.06
28.4.06
27.4.06
livro dos casos antigos, i. ícaro é inevitavelmente um caso estranho, um homem que cai do céu. 3.
26.4.06
25.4.06
corpurbano. nas cidades gastas ou enxangues, o seu miolo é preenchido por vazios e silêncios. 3.
24.4.06
o mesmo poema
um dia o mesmo poema resumir-se-á
neste verso, não é fácil dizer vem. s. d’o.
22.4.06
da experimentação. experimentar, anything goes, é não saber o que vem, a consequência. 3.
21.4.06
elouca
naquele quarto não havia deus, apenas
golpes de silêncio. não havia rumor
sonâmbulo ou qualquer outra instância.
as mãos eram-lhe o alcance da loucura
que a invadia. não demorou nelas a ilusão
da emancipação porque a amarram, mãos e
pés, à cama.
injectaram-lhe exterior. começou a alucinar,
a bordar a distorção da estrutura do quarto.
mostrou a língua, mas não gritou. no seu
rosto apareceu o esgar dos acossados.
imaginou-se a procurar búzios na montanha.
sentiu a culpa que não lhe acontecia. em si
a vontade de suicídio não adormecia. não
se evitou. procurou o que as mãos lhe traziam
e conduziam. reclamou-se. desejou fugir consigo,
sem a tutela dos que a diziam louca.
fingiu-se acordada. fingiu-se feliz. pelo
fingimento mais facilmente os vigilantes
acreditavam nela. foi por aí que ela se evadiu. s. d’o.
20.4.06
19.4.06
senda
ouviu uma voz. prosseguiu.
o eco das suas palavras
chamava-o de diante para diante. s. d’o.
18.4.06
17.4.06
tu, quem és?
calo as palavras. o silêncio diz-te com
mais verdade do que aquela que
eu seria capaz de dizer-te. calo-me.
nada mais sei de ti. por isso, digo,
não te conheço, és-me clandestina.
de ti sei apenas o que sei, vaga nota.
e o que mais sei é para além de
ti, são os arredores que te percebo.
sei que no mistério onde habitas
são mais as almas do que
as tuas trincheiras.
e sei que pelo caminho onde andas
são mais os demónios do que
os teu passos.
sei que na varanda onde dormes
são mais os fantasmas do que
os teus olhos.
e sei que no corpo em que foges
são mais as fomes do que
as tuas mãos.
agora calo-me. nada mais sei de ti.
e o que mais sei é para além de
ti. volto a calar-me. poderia continuar,
mas calo-me, para não me enganar. s. d’o.
15.4.06
o caminho dos noctâmbulos. perante o destino auschwitz-birkenau, onde muitos dos dias foram de cinzas, a memória é o retorno do fim. 3.
14.4.06
idílio, ii
trazes a ânsia, a vertigem capital
do toque. na busca, a fuga. mas
também a mesma vontade sóbria,
só, de teres-te. s. d’o.
13.4.06
qui est «in» qui est «out». a presença é um paralelo da ausência. 3.
12.4.06
idílio, i
não foi no espelho que aprendi
os rebanhos. aprendi-os, foi,
contra a planície e sobre a
reparação das papoilas. s. d’o.
11.4.06
do vazio. o vazio, mais do que uma categoria de exercício ontológico, é uma consequência do detalhe da sensibilidade contra o modo primordial da matéria. 3.
10.4.06
capítulos do acto da fome, i. o homem cortou o pão do dia, cortou-o em pequenos pedaços, e lançou-o sobre a terra amanhada. repetiu o acto nas seis manhãs seguintes e nada mais fez durante o intervalo dessa semana. nos últimos dias o seu corpo já fraquejava. o jejum a que se tinha obrigado levara-lhe as forças. notando isso, os vizinhos estranharam e pretenderam esclarecer o motivo do exercício do homem. ao testemunharem aquele acto percebiam apenas o desperdício do pão, o pão que segura a vida. daí que, ao sétimo dia, a vizinhança tenha constituído uma comitiva à qual foi atribuída a missão de ir averiguar o caso. o vizinho que mais próximo se chegou do homem, suspeitando haver nele loucura ou vertigem de semelhante consequências, alertou-o, ó tu, sabe isto: o pão não é coisa que se semeie. o que se semeia é o grão, depois o grão germina em planta e essa planta gera um cacho de novos grãos, grãos esses que são moídos até serem farinha, farinha à qual se junta água e sal para fazer massa, massa que é cozida no forno de lenha. apenas o fim, saído do forno, é o pão. o homem olhou o seu vizinho e os demais que o acompanhavam. sorriu-lhes e falou-lhes assim, eu sei o que é a dialéctica e como, por contradições sucessivas, da semente se chega ao pão. o que eu não sabia era o que é o vazio. mas em sete dias aprendi. e aprendi como o vazio me encheu, encheu de apetite. dito isto, colheu um fruto da macieira mais próxima e trincou-o, interrompendo a fome, enquanto os outros, o que é a dialéctica?, olha, não sei, e o que é o vazio?, olha, também não sei, ainda surpresos, murmuravam a ignorância entre si. s. d’o.
8.4.06
do regresso. regressar é um modo de composição verbal tanto da origem quanto do destino. 3.
7.4.06
6.4.06
do facto. o facto é o que é atestado por ou como prova. ou seja, o facto é o que é provado ou aprovado. 3.
5.4.06
4.4.06
3.4.06
margem
goteja e a memória é dupla, água dobrada,
doce, salgada. por isso ela ficou, manteve-se
guardada na margem, a observar ainda o compasso
das vagas. só com os olhos, consegue escutar
o murmúrio tardio que ainda ressoa, que lhe vem
desde a casa de ontem.
passam os barcos, crescendo o tributo
ao rio que ali se derrama. há uma linha,
rota quase redonda, que para ela permanece
incógnita. confia e não a aflige isso,
habituada a acompanhar a navegação por
aquele caminho aquoso.
mas há um dia em que lhe é o alvoroço. começam
a aulir lamentos, sem tempo para as preces,
porque daquela gávea que foi já não se avista
porto ou beira. o fundo demora a penitência
e turva a superfície. os náufragos não regressam
como foram. tardam. as águas, as pequenas e as
grandes, ambas salgadas, encontram-se.
ela, porém, ficou mais uma vez. manteve-se guardada
na margem, como nos demais dias de outrora, embora,
agora, ali, ela, como arquipélago, continue à espera
do homem que, sabe, aquele lastro vasto já não conhece.
ontem levaram-no para terra firme, de onde não vai voltar.
é quase isso que ela carpe. s. d’o.
1.4.06
da estupidez. a estupidez franca funda-se sobre dois tipos de incapacidade, a incapacidade de diferenciar e a incapacidade de articular. 3.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).