margem
goteja e a memória é dupla, água dobrada,
doce, salgada. por isso ela ficou, manteve-se
guardada na margem, a observar ainda o compasso
das vagas. só com os olhos, consegue escutar
o murmúrio tardio que ainda ressoa, que lhe vem
desde a casa de ontem.
passam os barcos, crescendo o tributo
ao rio que ali se derrama. há uma linha,
rota quase redonda, que para ela permanece
incógnita. confia e não a aflige isso,
habituada a acompanhar a navegação por
aquele caminho aquoso.
mas há um dia em que lhe é o alvoroço. começam
a aulir lamentos, sem tempo para as preces,
porque daquela gávea que foi já não se avista
porto ou beira. o fundo demora a penitência
e turva a superfície. os náufragos não regressam
como foram. tardam. as águas, as pequenas e as
grandes, ambas salgadas, encontram-se.
ela, porém, ficou mais uma vez. manteve-se guardada
na margem, como nos demais dias de outrora, embora,
agora, ali, ela, como arquipélago, continue à espera
do homem que, sabe, aquele lastro vasto já não conhece.
ontem levaram-no para terra firme, de onde não vai voltar.
é quase isso que ela carpe. s. d’o.