capítulos do acto da fome, i. o homem cortou o pão do dia, cortou-o em pequenos pedaços, e lançou-o sobre a terra amanhada. repetiu o acto nas seis manhãs seguintes e nada mais fez durante o intervalo dessa semana. nos últimos dias o seu corpo já fraquejava. o jejum a que se tinha obrigado levara-lhe as forças. notando isso, os vizinhos estranharam e pretenderam esclarecer o motivo do exercício do homem. ao testemunharem aquele acto percebiam apenas o desperdício do pão, o pão que segura a vida. daí que, ao sétimo dia, a vizinhança tenha constituído uma comitiva à qual foi atribuída a missão de ir averiguar o caso. o vizinho que mais próximo se chegou do homem, suspeitando haver nele loucura ou vertigem de semelhante consequências, alertou-o, ó tu, sabe isto: o pão não é coisa que se semeie. o que se semeia é o grão, depois o grão germina em planta e essa planta gera um cacho de novos grãos, grãos esses que são moídos até serem farinha, farinha à qual se junta água e sal para fazer massa, massa que é cozida no forno de lenha. apenas o fim, saído do forno, é o pão. o homem olhou o seu vizinho e os demais que o acompanhavam. sorriu-lhes e falou-lhes assim, eu sei o que é a dialéctica e como, por contradições sucessivas, da semente se chega ao pão. o que eu não sabia era o que é o vazio. mas em sete dias aprendi. e aprendi como o vazio me encheu, encheu de apetite. dito isto, colheu um fruto da macieira mais próxima e trincou-o, interrompendo a fome, enquanto os outros, o que é a dialéctica?, olha, não sei, e o que é o vazio?, olha, também não sei, ainda surpresos, murmuravam a ignorância entre si. s. d’o.