já foi de dois lugares. e de nenhum regressou. é por isso que ele é improvável. como o mundo. e persegue a infelicidade que transporta. como prometeu. não como sísifo. pois não é a pedra que se lhe esquiva, obrigando-o a continuar o princípio. é o bico da ave que o dilacera, adiando, ad æternum, o fim que lhe acontece. s. d’o.
perguntas, o que subsiste?, depois do fim. não há resposta.
há resposta. o tempo parece não transcorrer. os olhos capitulam. abre-se uma vaga entre os braços. as mãos entregam-se numa vertigem estranha, por desconhecerem a nova fronteira, a ausência que tocam.
a ausência que tocam. começa uma noite. e repete-se. a fuga.
repete-se. a fuga. num lapso, parte-se a crisálida nocturna. e aquela pergunta, o que subsiste?, depois do fim, transforma-se, não se apaga.
não se apaga. onde estou?
não se apaga. onde estou? aqui.
não se apaga. onde estou? aqui. súbito, afinam-se os sentidos, captam-se os elementos com outra nitidez. regressa o fulgor, o clamor, o cerco, o princípio.
o cerco, o princípio. e aquele chão torna-se o lugar da continuação. a fuga.
lugar da continuação. a fuga. quem és?, tu. s. d’o.
natureza morta. olhares, gestos, palavras. um traço ténue borda o quadro, marcando os limites daquela divisão. há ali, dentro, expostas, duas mãos, mãos mortas. uma sobre a outra. não sobre uma mesa. mas sobre um corpo. s. d’o.
um dia, já tarde, encontrar-me-ás outra vez, mas a minha boca já não vigiará a tua. e as minhas mãos já não se inclinarão sobre o teu corpo. perceberás, então, a ilusão. o meu sangue poderia ter sido afluente do teu. jamais, porém, a tua casa. porque, antes de me reencontrares, verteste-o na mesma selha onde guardas o que vês e, porque vês, desejas esquecer. s. d’o.
perdição. ela via-o muitas vezes, taque, taque, taque, a bater nas teclas do computador. ele tinha intenção de adquirir um mac, mas era ainda num compaq que editava os seus textos. ela olhou-o, fixou-o. aproximou-se dele. insinuou-se no espaço do escritório. correu a sua língua pelos lábios, tonificando-os. depois disse-lhe, era tudo mais fácil se, entranhada, não houvesse a sensação da própria estupidez. ele insistiu no taque, taque, taque, tomado pelo dever de terminar aquele ensaio, sobre as condições de sustentabilidade da democracia. quando, depois, por instantes, a interpelou, disseste o quê?, verificou que ela já não estava ali, próxima. s. d’o.
princípio. no quadragésimo quinto episódio da série six feet under, claire, com as suas mãos, pintou terror starts at home numa parede do seu quarto. depois foi jantar com a família. 3.
virá um incêndio reunir os elementos. virá como um adolescente, em respiração de véspera, moendo lentamente, na sombra, o rastilho. e crescerá.
será como um beijo. primeiro o verão, depois a melancolia. numa outra hipótese, navegará sobre os ventos, indo entre os dedos, entre as mãos, entre os braços, vencendo os corpos, um a um, sem capitular.
após virá o cansaço. as chamas inclinarão sobre si a reverência. e deixará de haver o primeiro sinal do que aconteceu, o fumo. será isso agora e na hora da nossa morte. s. d’o.
wake up death man. acordar sob o débito da voz de yeats, apenas as suas palavras, não é acordar. é amanhecer, já demoradamente ditado o sol, sob o corpo de uma lua, cruz celta. 3.
o corpo devia ser fácil, dissolver-se conforme a vontade. acordar corpo, apenas corpo, todos os dias, os dias que passam. e renunciar às sílabas que o fazem, se nele morreu, antes da vida, a disposição a ser casa do sangue, do sangue dito. e, porque dito, sangue revolto e vivo, manhã de todos os dias, os dias que passam. s. d’o.
evidence. a evidência é a experiência aberta para a confirmação e para a conformação de uma origem. ou seja, a evidência é a nascente onde as coisas acabam de nascer como anteriores, antigas. 3.
pedaços de paisagem. serão suficientes?, suficientes para compor o puzzle?, se faltam peças. sim, faltam peças. como a mim me falta corpo. mãos, sobretudo. é por isso que não vou continuar a gritar, o que mudou?, e não vou persistir na recolha dos estilhaços da unidade. não sou de cá. vim só ver os jacarandás em flor. ali, estás a ver? s. d’o.
as palavras são o bordo de nada, a sombra do silêncio, o corpo que o revela, que o leva para as trincheiras. é esse o caminho a seguir. dizer as palavras certas. as palavras que enganam. e, depois, voltar. s. d’o.
visões. já tarde, quando admitia o sol caído, percebeu o céu ainda incendiado, as nuvens traçadas de inflama. a luz desaparecia vagarosamente. ao mesmo ritmo, as sombras esbatiam-se. mas, naquele lugar, naquele momento, começou a ver de outro modo. tudo. foi-lhe possível ver para além da opacidade a que as palavras, os corpos, as paredes, os sonhos dão substância. foi-lhe possível, a ver, alcançar, tocar, moldar as coisas sem gesto ou esboço disso. depois, abriu os olhos e cegou de abundância. as imagens, nos seus ciclos sincopados, deixaram de ser traduzidas pelos sentidos dele. o facto não o incomodou. ele via tudo. mesmo quando a noite lhe acontecia mais escura. mesmo quando se encerrava em si mesmo, o mais inexpugnável dos cativeiros. ele mesmo era biombo para si. mas via tudo. mesmo quando não via. mesmo quando lhe colocavam as mãos sobre os olhos. mesmo quando as vozes o habitavam. ele via tudo. por ver para além. por já não necessitar de ver. por ter visto. tudo. o jogo. a vida. o outono. o labirinto. ele, omnividente, via tudo. mesmo cego. e continuou a chamar-se borges. s. d’o.