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almanaque de ironias menores

caderno de exercícios avulsos e breves, por serôdio d’o. & 3ás 

30.6.05


vertigem. nas notícias, no mundo está sempre a acontecer a derradeira ceia, o mundo está sempre a acabar. 3.

referência

29.6.05


a improbabilidade do ser

já foi de dois lugares. e de nenhum
regressou. é por isso que ele é
improvável. como o mundo. e
persegue a infelicidade que
transporta. como prometeu. não
como sísifo. pois não é a pedra que
se lhe esquiva, obrigando-o a continuar
o princípio. é o bico da ave que o
dilacera, adiando, ad æternum,
o fim que lhe acontece. s. d’o.

referência

28.6.05


fim. o consumo, enquanto forma de terminar o corpo, satisfaz o stock da felicidade. plena e derradeiramente. 3.

referência

27.6.05


alvo

ele queria ser branco
e que não lhe acertassem. s. d’o.

referência

25.6.05


ofício de açougueiro. em de grønne slagtere, realizado por anders thomas jensen, a carne é protagonista, não actriz secundária ou figurante. 3.

referência

24.6.05


sob capricórnio

perguntas, o que subsiste?, depois do fim. não
há resposta.

há resposta. o tempo parece não transcorrer. os
olhos capitulam. abre-se uma vaga entre os
braços. as mãos entregam-se numa vertigem
estranha, por desconhecerem a nova fronteira,
a ausência que tocam.

a ausência que tocam. começa uma noite. e
repete-se. a fuga.

repete-se. a fuga. num lapso, parte-se a
crisálida nocturna. e aquela pergunta, o que
subsiste?, depois do fim, transforma-se,
não se apaga.

não se apaga. onde estou?

não se apaga. onde estou? aqui.

não se apaga. onde estou? aqui. súbito,
afinam-se os sentidos, captam-se os elementos
com outra nitidez. regressa o fulgor, o clamor,
o cerco, o princípio.

o cerco, o princípio. e aquele chão torna-se o
lugar da continuação. a fuga.

lugar da continuação. a fuga. quem és?, tu. s. d’o.

referência

23.6.05


equilibrium. no mundo perfeito, o crime é sentir. 3.

referência

22.6.05


natureza morta. olhares, gestos, palavras. um traço ténue borda o quadro, marcando os limites daquela divisão. há ali, dentro, expostas, duas mãos, mãos mortas. uma sobre a outra. não sobre uma mesa. mas sobre um corpo. s. d’o.

referência

21.6.05


aproximação ao fruto do ventre. tocar é conceber sem gesto, preenchê-lo e fazê-lo para a memória. 3.

referência

20.6.05


i'll be your mirror

um dia, já tarde, encontrar-me-ás outra
vez, mas a minha boca já não vigiará a
tua. e as minhas mãos já não se inclinarão
sobre o teu corpo. perceberás, então, a
ilusão. o meu sangue poderia ter sido
afluente do teu. jamais, porém, a tua
casa. porque, antes de me reencontrares,
verteste-o na mesma selha onde guardas
o que vês e, porque vês, desejas esquecer. s. d’o.

referência

18.6.05


como te chamas?, maria. em je vous salue, marie, de godard, a concepção é, como é de ser, com mácula, embora sem pecado. de ser assim. 3.

referência

17.6.05


perdição. ela via-o muitas vezes, taque, taque, taque, a bater nas teclas do computador. ele tinha intenção de adquirir um mac, mas era ainda num compaq que editava os seus textos. ela olhou-o, fixou-o. aproximou-se dele. insinuou-se no espaço do escritório. correu a sua língua pelos lábios, tonificando-os. depois disse-lhe, era tudo mais fácil se, entranhada, não houvesse a sensação da própria estupidez. ele insistiu no taque, taque, taque, tomado pelo dever de terminar aquele ensaio, sobre as condições de sustentabilidade da democracia. quando, depois, por instantes, a interpelou, disseste o quê?, verificou que ela já não estava ali, próxima. s. d’o.

referência

16.6.05


princípio. no quadragésimo quinto episódio da série six feet under, claire, com as suas mãos, pintou terror starts at home numa parede do seu quarto. depois foi jantar com a família. 3.

referência

15.6.05


corpo de incêndio

virá um incêndio reunir os
elementos. virá como um
adolescente, em respiração
de véspera, moendo lentamente,
na sombra, o rastilho. e
crescerá.

será como um beijo. primeiro
o verão, depois a melancolia.
numa outra hipótese, navegará
sobre os ventos, indo entre
os dedos, entre as mãos, entre
os braços, vencendo os corpos,
um a um, sem capitular.

após virá o cansaço. as
chamas inclinarão sobre si a
reverência. e deixará de haver
o primeiro sinal do que
aconteceu, o fumo. será isso
agora e na hora da nossa morte. s. d’o.

referência

14.6.05


wake up death man. acordar sob o débito da voz de yeats, apenas as suas palavras, não é acordar. é amanhecer, já demoradamente ditado o sol, sob o corpo de uma lua, cruz celta. 3.

referência

13.6.05


prolegómenos a um requiem

o corpo devia ser fácil,
dissolver-se conforme
a vontade. acordar corpo,
apenas corpo, todos os
dias, os dias que passam.
e renunciar às sílabas que
o fazem, se nele morreu,
antes da vida, a disposição
a ser casa do sangue, do sangue
dito. e, porque dito, sangue
revolto e vivo, manhã de todos
os dias, os dias que passam. s. d’o.

referência

11.6.05


o processo. em the man who wasn't there, de joel coen, sente-se que a consciência é um homem que fuma. 3.

referência

10.6.05


admissões

que seja. o corpo desolado, posto
sobre os escombros, sobre o chão
dissoluto, em quadro e rendido.

que seja. a moça morena a manifestar,
nocturna, o desejo. e os frutos
de sol e incendiado tempero.

que seja. os versos mortos, dispersos
na paisagem. a vaga contínua de
nostalgia renascida.

que seja. a raiva eterna de quem sente
que aconteceu ser para ser.

que seja. a morte e, por ela, a
ressurreição. para continuar a ser
antes. s. d’o.

referência

9.6.05


evidence. a evidência é a experiência aberta para a confirmação e para a conformação de uma origem. ou seja, a evidência é a nascente onde as coisas acabam de nascer como anteriores, antigas. 3.

referência

8.6.05


ensaio sobre a cegueira

fechar os olhos. abrir os olhos.
e continuar a não ver o que não
está diante, no horizonte visto. s. d’o.

referência

7.6.05


corporação. o corpo é uma constelação de ofícios. 3.

referência

6.6.05


prenúncio de fim

pedaços de paisagem. serão suficientes?,
suficientes para compor o puzzle?,
se faltam peças. sim, faltam peças.
como a mim me falta corpo. mãos,
sobretudo. é por isso que não vou
continuar a gritar, o que mudou?,
e não vou persistir na recolha dos
estilhaços da unidade. não sou
de cá. vim só ver os jacarandás
em flor. ali, estás a ver? s. d’o.

referência

4.6.05


mirrorland. o reflexo é a devolução de um dos outros lados do espelho. 3.

referência

3.6.05


o caminho para o silêncio

as palavras são o bordo
de nada, a sombra do silêncio,
o corpo que o revela, que o
leva para as trincheiras. é
esse o caminho a seguir. dizer
as palavras certas. as
palavras que enganam. e,
depois, voltar. s. d’o.

referência

2.6.05


destino. sob a sombra do tempo, não há futuro. 3.

referência

1.6.05


visões. já tarde, quando admitia o sol caído, percebeu o céu ainda incendiado, as nuvens traçadas de inflama. a luz desaparecia vagarosamente. ao mesmo ritmo, as sombras esbatiam-se. mas, naquele lugar, naquele momento, começou a ver de outro modo. tudo. foi-lhe possível ver para além da opacidade a que as palavras, os corpos, as paredes, os sonhos dão substância. foi-lhe possível, a ver, alcançar, tocar, moldar as coisas sem gesto ou esboço disso. depois, abriu os olhos e cegou de abundância. as imagens, nos seus ciclos sincopados, deixaram de ser traduzidas pelos sentidos dele. o facto não o incomodou. ele via tudo. mesmo quando a noite lhe acontecia mais escura. mesmo quando se encerrava em si mesmo, o mais inexpugnável dos cativeiros. ele mesmo era biombo para si. mas via tudo. mesmo quando não via. mesmo quando lhe colocavam as mãos sobre os olhos. mesmo quando as vozes o habitavam. ele via tudo. por ver para além. por já não necessitar de ver. por ter visto. tudo. o jogo. a vida. o outono. o labirinto. ele, omnividente, via tudo. mesmo cego. e continuou a chamar-se borges. s. d’o.

referência

2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).