visões. já tarde, quando admitia o sol caído, percebeu o céu ainda incendiado, as nuvens traçadas de inflama. a luz desaparecia vagarosamente. ao mesmo ritmo, as sombras esbatiam-se. mas, naquele lugar, naquele momento, começou a ver de outro modo. tudo. foi-lhe possível ver para além da opacidade a que as palavras, os corpos, as paredes, os sonhos dão substância. foi-lhe possível, a ver, alcançar, tocar, moldar as coisas sem gesto ou esboço disso. depois, abriu os olhos e cegou de abundância. as imagens, nos seus ciclos sincopados, deixaram de ser traduzidas pelos sentidos dele. o facto não o incomodou. ele via tudo. mesmo quando a noite lhe acontecia mais escura. mesmo quando se encerrava em si mesmo, o mais inexpugnável dos cativeiros. ele mesmo era biombo para si. mas via tudo. mesmo quando não via. mesmo quando lhe colocavam as mãos sobre os olhos. mesmo quando as vozes o habitavam. ele via tudo. por ver para além. por já não necessitar de ver. por ter visto. tudo. o jogo. a vida. o outono. o labirinto. ele, omnividente, via tudo. mesmo cego. e continuou a chamar-se borges. s. d’o.