30.6.04
exercícios de estilo em allegro e encontro, i
a explicação do anjo de müller
não é um jogo, é a vida, persuadiu-o o
anjo de müller.
e se a vida é um jogo?, inquiriu ele.
não é a vida, então, explicou o anjo,
é outro motivo qualquer, como os
destroços que jazem sob os meus pés. s. d'o.
29.6.04
psappha. ψαπφα é um solo de percursão, composto por iannis xenakis. que, enquanto obra, permite a sensação que o mundo é uma caixa inteira de ritmos. 3.
28.6.04
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, viii. o tempo real é o tempo da paciência. o tempo irreal é o tempo da consciência. s. d’o.
26.6.04
new look. o amor acontece quando se rasga um olho a quem se ama, para lhe oferecer uma outra perspectiva, dobrada, desdobrada, aberta a flancos mais do que a esquerda ou a direita. 3.
25.6.04
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, vii. a fuga é uma das condições possíveis do regresso. s. d'o.
24.6.04
limite. aprende-se com voyage au bout de la nuit, de céline, que a condição humana é um cocktail visceral de intrínseca e inalienável miséria. é por isso que o acto, qualquer se seja, não é cobarde, mas a animação, pelo corpo, do alicerce único que suporta a angústia e a respectiva sentinela. o acto, qualquer que seja, é mais condicionado pela exactidão orgânica das mucosas do que pelo exercício da metafísica. porquanto acontece que o juízo é uma função somática, não um dispositivo alheio à experiência da carne, disposto contra o horizonte do que o livre arbítrio ou a vontade consentem. 3.
23.6.04
todos os dias que não acontecem
apaixona-se por sorrisos em face
aberta, com corte curvilíneo
ligeiro, e companhia de olhar lento.
morre depois. sem inveja suficiente
para ressuscitar. sem ciúme. sem
saudade. sem redenção. e acorda
como um cadáver. s. d'o.
22.6.04
credenda. acreditar no que se vê, sem se renunciar à hipótese da suspeita, é, enquanto princípio irónico, um princípio vital. e também uma forma de, por economia cognitiva, confiar na loucura, que jamais abandona a ronda do cerco. 3.
21.6.04
desejos
vende-me o teu passado, rogou ela. quero
ser uma mulher que se imagina, ou coisa,
ou máquina, ou futuro, explicou-lhe. e
assim, a querer, morreu, sem tempo ou
passado para se imaginar futuro. s. d'o.
19.6.04
dark side. magritte concebeu setenta e sete ilustrações para les chants de maldoror, de lautréamont. melancolia é um desses setenta e sete sóis de negro fluorescente, como se fosse a representação de uma euforia que cintila lenta no vácuo, a anunciar o outro lado da noite. 3.
18.6.04
wmd
o que queres ser?, uma motosserra? ou
um motor de bordo?, perguntou-lhe
alguém. quero ser um triciclo de napalm,
respondeu ele, sem parecer louco. s. d'o.
17.6.04
ceci n’est pas un homme, ou um acto por magritte. uma noite, rené e georgette, com paul éluard, seguiam pelas ruas de paris, para um encontro do grupo surrealista, a ter lugar no café cyrano. pelo caminho, paul notou a cruz de ouro que georgette tinha ao pescoço e aconselhou-a a escondê-la, alertando-a para o desagrado que a mesma iria suscitar a andré breton. georgette nenhuma providência tomou. chegados ao encontro, breton, altivo, ordenou a georgette que tirasse o pendente crucífero. ela abandonou súbito o café. no que foi seguida por rené. “feliz aquele que, por amor a uma mulher, é levado a trair as suas próprias convicções”, comentou depois, assim, rené, o episódio. percebe-se talvez nesse gesto, acontecido em mil novencentos e trinta, a mensagem d’les amants, pintado dois anos antes. o beijo sela a invisibilidade do próprio acto. 3.
16.6.04
um dia. perguntou, sem tempo, urgente, quem é molly bloom? a mulher que aconteceu um dia, como hoje, foi a resposta que obteve. 3.
três cenas bíblicas avulsas
i.
foi de madeira de acácia que
foi talhado o altar dos perfumes.
ii.
foi de enxofre e de fogo a chuva
com que deus destruiu sodoma
e gomorra e foi de sal a estátua
em que se transformou a esposa
de lot.
iii.
foi sob um lentisco que um dos
anciãos do povo nomeados
naquele ano afirmou ter
visto susana, filha de helquias,
esposa de joaquim, unir-se em
pecado com um viril rapaz.
foi sob um carvalho que o outro
dos anciãos disse ter visto
susana em preverso entretenimento
com o mesmo rapaz. as duas
testemunhas do acto não concordaram
no testemunho, ambos falsos, por
ser susana inocente de tal mal.
depois do juízo de daniel, foram
os dois velhos mortos, conforme ordem
da lei de moisés. e louvado foi
deus por haver sido poupada a vida
de uma inocente. s. d'o.
15.6.04
o desassossego da ironia. pode alguém que se esforça para acompanhar sanches ser assertivo? provavelmente não. o que significa que a ironia se justifica até ao limite em que é suportável a inquietude. pois para além desse limite, a ironia obrigaria a um sossego indisponível em si mesma. 3.
14.6.04
dilema onírico
por mais que o sonho te convoque,
não consegues reconhecer-lhe ou
atribuir-lhe um título justo. valerá
a pensa sonhar assim?, perguntas-te,
um sonho sem identidade. s. d'o.
13.6.04
light my fire. o fogo é o tempo que arde, o que faz do isqueiro um cronómetro. 3.
11.6.04
da listost. o que é a listost? escreveu kundera, n’le livre du rire e de l’oubli, que a listost é o complexo operativo, o dispositivo do ressentimento suscitado pela incapacidade quando revelada a quem é incapaz. segundo as suas próprias palavras, “a listost é um estado tormentoso que nasce do espectáculo da nossa própria miséria subitamente descoberta”. ou seja, “a listost funciona como um motor a dois tempos. ao sentimento de angústia sucede o desejo de vingança”. sentimento e desejo que só o amor pode, quando pode – isto é, raramente –, aplacar. o que faz da listost um drama infungível. 3.
10.6.04
a oração e os frutos
um dia alguém terminará esta
oração. agora, vou continuar
a comer as nêsperas que
roubei. s. d'o.
9.6.04
a condição d’o banqueiro anarquista. disse o banqueiro anarquista ao seu comensal, “o que há de mau nas ficções sociais são elas, no seu conjunto, e não os indivíduos que as representam senão por serem representantes delas”. é por isso que o combate à tirania das ficções sociais não é um combate corpo a corpo, contra um inimigo definido, com rosto, mas uma revolução. uma revolução composta pelo conjunto das liberdades que cada um descobre por si mesmo, num trabalho solitário, apartado, que revolve, sem o subsídio do gregarismo, a condição humana, primeiro, e as instituições sociais, depois, pelas quais a condição humana é o que é e pode ser. 3.
8.6.04
café central
o sol, a sombra, a praça morta, já
junho. a velha sentada num banco,
com um xaile a cobrir os joelhos.
vejo-a pela vitrina do café, a aura
da solidão, o peso do tempo sobre
o corpo, nos ossos e na carne
engelhada das rugas. a velha, diante
dos meus olhos, é o futuro. e nele
vejo-me sem tempo, condenado,
a regressar para a fuga de que
não é possível sair. destino não
é o nome de um filme. é a
vida revelada.
faz falta uma esplana nesta
praça morta. se existisse,
talvez permitisse enganar-me. mas
o senhor presidente da câmara
municipal não gosta de enganos,
para poder enganar-se solto. s. d'o.
7.6.04
cocaine blue. o nevoeiro, como se fosse um novelo de gaze, embrulha a fortaleza contra si. a luz dos holofotes é comprimida por esse lençol e estende-se, produzindo um efeito de halo. em seu torno, a noite segrega vozes, vozes difusas, sons quase quietos, murmúrios, como se fosse o planalto de onde a madrugada há-de ressuscitar o sturm und drang que faz a cidade acontecer moderna e urbana, lá em baixo, no seu ritmo. 3.
5.6.04
obituário. morreu ronald reagan, alguém que foi actor e presidente de um estado chamado unitedstatesofamerica. é também por ele que merece ser lida uma velha short story de james graham ballard, vulgo j. g. ballard, com o título why i want to fuck ronald reagan. provavelmente um dos melhores elogios que lhe podia ser feito, ao malogrado. 3.
rasgar, o acto
a faca (en)contra a carne, a resistência,
o rasgo lento, o corte, a lâmina crava-se
fundo, aloja-se no segredo, o sangue
emerge. o fim está próximo. s. d'o.
4.6.04
as dimensões e envergaduras do herói pantagruel. pantagruel, filho de bocaberta, sua mãe, e de gargântua, seu pai, é uma criatura de dois tamanhos. de proporções monumentais, gigante, por nascença e natureza, quando só ou entregue a incomensuráveis e gloriosas façanhas. porém, quando entre os homens ou com eles parlamenta ou nos seus lugares, pantagruel é reduzido às proporções da humanidade. é neste jogo de escalas que rabelais o e(n)leva e distingue, a pantagruel, sem, indo para além da medida, o deificar. 3.
3.6.04
capítulos de uma geografia dos medos, viii
viagem
não são tanto os ciclos da viagem que
talham o contorno horizontal do
outono. a constelação mais próxima,
como paisagem da solidão, veste
o conforto da demora e
abandona-se quieta, imóvel,
para ser um adereço sob o
qual, quando a invenção acontece, se
reúnem os nascimentos. é por isso
que procura não significa
regresso. é por isso que abandono
não rima como destino ou origem. s. d'o.
2.6.04
confiança. não confiar nas criaturas que espreitam por buracos é o conselho com que rabelais remata les horribles et espouvantables faicts et prouesses du très renommé pantagruel, roy des dipsodes, fils du grant gargantua. o que tem dois significados. primeiro, a vida acontece lá fora, para além dos biombos, das paredes, das muralhas, e dela é conveniente que se seja testemunha próxima. depois, os postigos, as guritas, como os capuzes de frade, são diafragmas de estreita abertura e quem por aí, sobretudo por aí, percebe o mundo é gente com um alcance ou espectro de vistas demasiado curto para saber as coisas diversas que fazem o mundo tão tamanho e estranho. por isso, nenhum crédito e fidúcia, menos do que pouco, é de conceder a tal gente. pois tal gente traz o engano, engano não contrito. 3.
1.6.04
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, vi. a morte é a porta por onde alguém regressa derradeiramente a si e não se (re)encontra. s. d'o.
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, v. encanta a morte por não se poder conhecê-la íntima, mas apenas estranha. s. d'o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).