30.8.10
economia
infinito e necessário, o que seja é porque foi,
nada mais tenho a declarar, excepto a vontade
de resgatar os meus certificados de aforro, depois
passo aí pelo balcão, encerra às dezoito, não é?,
para tratar do caso, o meu caso. sabe?, já não acredito
que no poupar é que está o ganho, dizem por aí
que deus está morto e indexado à euribor. é por isso
que quero experimentar sensações novas, especular. s. d’o.
20.8.10
onde estás?, ii
contacto, o dispositivo ínfimo que é o tacto, o sentido final,
o quinto. a língua é antes da mão, os sabores são antes
da pressão. a vida é menos interrompida pelas distâncias
entre a pele e as coisas do que pelos sons, pelos cheiros
ou pelas luminosidades. o tacto é o primeiro factor da presença
e do corte, a condição do que está e compreende, porém,
justamente por isso, é um sentido fraco. se pergunto onde
estás? - e pergunto muitas vezes -, faço-o pelo alcance que consigo
e porque sei que estás longe. não apalpo o espaço, a tua ausência,
sinto o vazio a afastar-nos, matéria e forma, mas é como se tocasse
em ti outra vez e tu não estivesses ou não quisesses estar aqui,
onde tenho as mãos. s. d’o.
18.8.10
onde estás?, i
a fronteira é um corpo, get the guns out, get the guns
out, onde estás?, sigo a sombra, se não cresces pela voz.* s. d’o.
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* inclui um verso da canção «love is a deserter» (in no wow, domino recording company, 2005), da banda the kills.
16.8.10
sons abstractos, o teu coração ainda tictacteia, sinto a acidez,
o plano descaído, o toque frontal, a assunção do vómito, wait,
they don’t love you like i love you, a etapa do pulso e da paixão,
o refrão repete-se, uma mão sem destino, ronda vazia, busca
algo, talvez nunca tenhamos sido assim tão modernos ou, sem
assim tão, modernos, só modernos, talvez nunca tenhamos sido
modernos.* s. d’o.
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* inclui um verso da canção «maps» (in fever to tell, interscope records, 2003), da banda yeah yeah yeahs.
6.8.10
contra a parede
não há uma vida perfeita, momentos perfeitos talvez existam
mas os momentos são secções de uma vida, não são o lance
vital pleno. isto é uma observação banal, eu sei, quase indigna
de ser expressa. que os momentos são cortes e não uma vida
é algo que qualquer pessoa sabe, a afirmação disso é redundante.
na escrita devemos ser económicos mas também é verdade
que o que já está já está pelo que económico agora é continuar
como se a afirmação de banalidades ou redundâncias fosse
um momento da vida, nada mais do que isso, e a vida continuasse
como metáfora, como se, limpa, intacta, ferida à mesma.
a minha vida é cada vez mais contra a parede, uma vida aberta,
sem mão morta, sem vai bater àquela porta. as minhas disputas
são cada vez maiores e sentidas, integrais. tu dizes separação
e eu digo distância, tu dizes assim não pode ser, não vamos lá
e eu ouço, ouço melhor do que vejo, a miopia e o astigmatismo
encurtam-me as vistas, eu ouço antes de dizer já venho, não
demoro, tu dizes coração e eu digo não sei. a última palavra
que tenho é sempre a mesma, ligação, depois calo-me. silêncio
é uma palavra que talvez devessemos dizer juntos, dizer mais
vezes, sem a interrupção espera aí um bocadinho, porque espera
aí é esperar lá e nisto tu tens razão, é separação, não é distância.
porém imagina que não existes, que tu não és tu, ora se tu não és
tu, eu não sou eu, não posso ser, eu não posso mesmo ser eu,
e a minha vida cinge-se a uma parede, contra a qual não sou
ou tenho atitude ou acto. importas-te de ser essa parede?
incomoda-me imaginar-te diferente, para mim já basta
não existires. s. d’o.
4.8.10
a fome
é diferente. dizes aquela piada gasta, edgar alain prost,
e nada mais. no ecrã um grand prix de fórmula um, lá
fora um corvo a grasnar, a aproximar-se da janela, não sabemos
se irá entrar. a sala não é o quarto. esquecemos o tempo
de cortar a mágoa, de fundir o arame farpado e a liberdade
no mesmo gesto, alcance longo, lançada a palavra sobre ele.
a mão estendida para o pão, o pão levado ao azeite.
ao domingo, à hora de almoço somos simples. s. d’o.
2.8.10
flashback
em piccadilly circus o trânsito não flui.
uma limusina cor de rosa, hummer, destaca-se
entre o aparato automóvel. por causa do insólito,
tu estás mais contente do que eu. contornamos
as carcaças metálicas detidas sem atendermos
aos semáforos, estamos de regresso, quase,
e eu a imaginar o festim à ballard que podíamos
fazer, saltar sobre os automóveis, fugir. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).