contra a parede
não há uma vida perfeita, momentos perfeitos talvez existam
mas os momentos são secções de uma vida, não são o lance
vital pleno. isto é uma observação banal, eu sei, quase indigna
de ser expressa. que os momentos são cortes e não uma vida
é algo que qualquer pessoa sabe, a afirmação disso é redundante.
na escrita devemos ser económicos mas também é verdade
que o que já está já está pelo que económico agora é continuar
como se a afirmação de banalidades ou redundâncias fosse
um momento da vida, nada mais do que isso, e a vida continuasse
como metáfora, como se, limpa, intacta, ferida à mesma.
a minha vida é cada vez mais contra a parede, uma vida aberta,
sem mão morta, sem vai bater àquela porta. as minhas disputas
são cada vez maiores e sentidas, integrais. tu dizes separação
e eu digo distância, tu dizes assim não pode ser, não vamos lá
e eu ouço, ouço melhor do que vejo, a miopia e o astigmatismo
encurtam-me as vistas, eu ouço antes de dizer já venho, não
demoro, tu dizes coração e eu digo não sei. a última palavra
que tenho é sempre a mesma, ligação, depois calo-me. silêncio
é uma palavra que talvez devessemos dizer juntos, dizer mais
vezes, sem a interrupção espera aí um bocadinho, porque espera
aí é esperar lá e nisto tu tens razão, é separação, não é distância.
porém imagina que não existes, que tu não és tu, ora se tu não és
tu, eu não sou eu, não posso ser, eu não posso mesmo ser eu,
e a minha vida cinge-se a uma parede, contra a qual não sou
ou tenho atitude ou acto. importas-te de ser essa parede?
incomoda-me imaginar-te diferente, para mim já basta
não existires. s. d’o.