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almanaque de ironias menores

caderno de exercícios avulsos e breves, por serôdio d’o. & 3ás 

22.1.10


todas as manhãs

aqui, pode riscar-se aqui, aqui começam tu e os teus
olhos?, não sei. tenho mais dúvidas do que certezas,
mas tanto aquelas quanto estas não as posso sofrer
demasiado. o excesso de umas ou outras é o mesmo mal,
um aperto. não devemos meter-nos em apertos, é suficiente
a condição nossa, portanto precisa. talvez seja desnecessário
enunciar isto, não sei, ainda assim arrisco, a segurança
mínima antes do que o que nos transcende, o registo provisório,
o saldo negativo, a segunda língua, a terceira metade, a terceira
mão, as conjecturas, a plausibilidade, as probabilidades
e o cálculo delas. agora, também pode riscar-se agora, agora lanço
uma mão, não sei de ti, procuro-te. nunca te vi. toco um espelho,
nada. s. d’o.

referência

20.1.10


retrovisor

devia ser possível escrever sem voz, sem sobre,
e mesmo assim cortar o silêncio, cortá-lo por dentro,
como se corta a luz. bastar-me-ia esta inutilidade
para compreender o manuseamento da hipótese do corpo
espontâneo, assim como do corpo combinado, nada perder,
nada ganhar, transferir para a tardança o que já não pode
ser, o que sempre pôde ser, tudo porque podemos morrer
outra vez, precisamente outra vez, embora sem a mesma vontade.
e depois?, há sempre depois, uma voz de modo diferente
para cortar, para continuar a cortar até dizer-se chega,
por não haver mais matéria que não seja o silêncio. então,
que fazer?, cortar o silêncio também, não deter ou sossegar
a lâmina, prosseguir até que deus se renda e deixe os mortos
continuarem enterrados, com o peso que lhes foi atribuído.
antes do corte, depois do corte, a imputação única das mulheres
e dos homens, sob a qual ninguém espera a remissão da identidade,
porque as palavras foram adiantadas ao que pode ser. tudo,
alguém há-de dizer, ou nada. s. d’o.

referência

18.1.10


arrumação

acho que não posso mas posso. o regime é de premências,
de como as coisas são no tempo próprio das coisas.
para não variar, deserto da campanha, vou comer uma sandes
de leitão. tratar o corpo, primeiro, não alimentar ilusões,
ao mesmo tempo. o que é que isto interessa?, pouco, se algo
mais do que nada. na verdade ando a aprender a descobrir
a lealdade nas interrogações, nos problemas e nos traumas
que as interrogações combinam. não tenho ilusões, não
se trata de trocar quem seja o senhor presidente da câmara
municipal.

na cidade não ouço as pronúncias, não observo os remendos
da boca. sou lento porém na mesma urgência do músculo.
pertenço à tribo dos que demoram tudo, inclusive a febre,
o suor, o sémen. chamo um táxi, esta já não é a minha safra.
hei-de chegar tarde, mas hei-de chegar, é o que importa.

escrevo a medo, não com medo ou por medo, escrevo esta declaração
a medo. sei-a um modo de apelo, sem certeza. há muito tempo
que ando a tentar endurecer o miocárdio. nada mais desejo declarar
agora. s. d’o.

referência

8.1.10


o passado é agora

zumbe o tempo, a perseguição. sou uma câmara animal
e o espólio de falência que me acompanha. e agora?
talvez devesse chamar poder à incapacidade de actualidade
que sofro, porém não quero. basta-me demorar, sentir
o arrasto pelo qual sou. se em mim é cada vez mais ontem,
se sou sem dialéctica para adiantamento, sou simplesmente
assim, não sou por já ter sido ou por ter-me rendido. s. d’o.

referência

6.1.10


à la recherche

aqui, até onde não há onde, declaro-te
a ferida é uma arma. s. d’o.
__________
“até onde não há onde” é o princípio de uma frase do sermão de nossa senhora do ó, escrito por antónio vieira.

referência

4.1.10


depois

o futuro?, o futuro é ainda não, a respiração, o inquilino
que já és. s. d’o.

referência

2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).