se o corpo fosse uma mulher seria necessário recomeçar o espanto e, depois, a anatomia. e seria necessário ser um homem para refulgir-lhe essa evidência. s. d’o.
porquê as palavras?, porquê as polaroids?, porquê o estremecimento e o vento raso neste chão?, porquê a margem da península?, porquê as vagas? e porquê o seu marulhar?, porquê a têmpera lenta dos pêssegos sob a luz primaveril?, porquê a paisagem aberta na manhã que amanhece lenta?, em tempo vagaroso erguido da aurora. sim, porquê?, porquê eu?, porquê aqui? s. d’o.
outonos da humana conditio. há uma comunhão entre il gattopardo, de tomasi de lampedusa, e the sound and the fury, de faulkner. a narrativa da miséria a acontecer como acontece. no osso, não no sangue, das personagens. 3.
porquê o encerramento neste exílio?, porquê antes o pleito e a sentença?, que testemunha?, quem?, me denunciou, que fiz feito que fosse caso e merecesse este juízo?, se me dou, por ser, inocente. s. d’o.
nunc et in hora mortis nostræ. em der prozeß, de kafka, as últimas palavras de k., já depois de cravada e rodada a lâmina de magarefe no seu coração, foram “wie ein hund!”. embora não no momento da respectiva pronúncia - também in articulo mortis -, estas palavras contrastam com “mehr licht!”, as últimas ditas por goethe. mas, se numas se percebe um enunciado de mortificação e noutras um enunciado da esperança, em ambas, quando ditas, soa a impotência, a incapacidade de ultrapassar o limite chamado morte. não destino. 3.
por todas as imaginações de que padeço, sei que não sou sonhador, mas sonho, o lugar carne onde acontece o que não aconteceu. é aí que acordo. é aí que concordo. os factos são dúvida. e eu também. s. d’o.
é ódio o que o meu corpo exala. é ódio o que o teu corpo exala. por essas expressões, a do meu corpo e a do teu corpo, só o ódio nos pode encontrar, só o ódio nos pode julgar. e, como nos encontra, é esse ódio exalado que já nos julga. um para o outro. um do outro. e nos faz mortos. e vivos. e solidão. e sangue ainda por derramar. que não tarde o seu derrame. para derradeiramente confirmarmos o ódio. que sou para ti. e que és para mim. s. d’o.
revelações. o poema é uma outra forma de dar evidência, frequentemente evidência espantada, às coisas e aos modos. ou seja, o poema é um modo de dizer outra vez o mesmo pelo ainda não dito. 3.
cinismo natural. há uma cena em mondovino, de jonathan nossiter, que descodifica todo o documentário. é quando um cão ergue a pata posterior esquerda e urina sobre uma base de pedra que suporta uma cruz alva, sinal de temência humana que é estranha à natureza. do cão. 3.
em qualquer lugar, quero saber onde, o mesmo caminho leva-nos daqui e traz-nos a esta origem. na berma desse caminho, não necessariamente traçado, há horas em que se estende uma penunmbra que, demorada, se vai adensando até o crepúsculo, como se fosse o outro lado do espelho, estilhaçar-se num intervalo contínuo de negro.
esse caminho é uma oração. os passos abrem-no, fazendo-o pátria. passo após passo, o corpo repete-se. repete-se não apenas no avanço, mas também no horizonte. o corpo faz-se e acontece nesse processo.
adiante da penumbra ainda é o tempo das sombras nítidas. ouvem-se os ruídos abertos, os sons cavados, os gestos que na página e na canção sugerem o naufrágio e a salvação.
nada disto é mistério. sobre os escombros há um arquitecto que desenha assim os lugares. a carne pode ser ferida, devorada, mas sobra sempre carne para as mãos serem, as mesmas mãos que talham a pedra e, com ela, constróem as moradas, os cais, as torres e os túmulos.
em qualquer lugar, quero saber onde, é o mesmo caminho para chegar e fugir. em qualquer lugar, aqui, sempre aqui, é, como sou, a loucura, a mesma loucura.
nestas palavras há pouco corpo. e, se te digo, não sei o seu paradeiro. também não quero saber. se vou morrer, basta-me a ironia que estas palavras, porque palavras, podem e alcançam. s. d’o.
poderia ser desta fome a primeira esperança, a inocência lavrada nos chãos do corpo. e, sempre posto assim, poderia o horizonte da história ser o nome do tempo, lugar onde persiste a suspeita sobre o ritmo exacto do futuro, futuro que não existe, mas é condição prometida.
poderia também a mão convocar nenhuma miséria para melhor compassar a dor e tocá-la quando não se faz ela sensação. e, como num jogo de compromisso, poderia a mesma mão não oferecer domicílio ao resgate que faz a vida ser uma nostalgia prisioneira de todos os destinos dos quais nenhuma âncora foge. s. d’o.