29.10.04
oficina
serão ferramentas deste hemisfério
quantas dúvidas tenhas sobre
o que é a sentença certa.
podes construir o edifício sobre
essas dúvidas. mas morrerás. aliás,
neste pormenor não és diferente
dos muitos demais. todos, tu também,
mortais, morrerão. s. d’o.
27.10.04
o nome de uma sombra que dança
este exercício enxague de poesia
termina no seu nome. não a vida,
a palavra. s. d’o.
26.10.04
lua que amanhece. a noite não deve, não pode acabar. pois a noite, esta noite, é o dia, o nosso dia a terminar. 3.
25.10.04
busca do teu paradeiro
sei que há um infinito dentro de ti,
já habitei esse universo. decidi procurar-te
uma vez mais para te devolver às
mãos a sensação dos demónios domesticados,
mas não te encontro. sei que no teu
corpo morro, não moro. também
não sei ressuscitar noutro lugar. por isso,
é-me indiferente se podem todos estes
gestos falir. basta-me o desejo de te
procurar e encontrar-te onde estás. s. d’o.
23.10.04
jumping jack flash. a noite não deve acabar sem assombro e tranquilidade. 3.
22.10.04
capítulos de uma geografia dos medos, iii
sul
fomos para sul. fomos, mas
não fomos. fui. fui para ir, na solidão,
sem resgate, perdido entre a paisagem
dos caminhos estranhos e novos. fui e
descobri-me uma personagem
de um filme antigo, próximo de uma
intimidade que desconhecia tão próxima,
vivido a preto e branco, convencional.
fui para sul, contra o sul. e, já lá, senti
que fomos. encontrámos juntos o
mar, encontrámos juntos os lugares,
encontrámos juntos os passos.
talvez até nos tenhamos encontrado,
um para o outro, tu para mim, eu
para ti. mas os corpos, nossos, fingiram
sempre o desencontro. para fugirem?,
para se prometerem?, para se reencontrarem?,
para se comprometerem?, para regressarem?,
não sei.
fui ao sul e, de lá, tornei-me um novo jeito
de pecado, uma promessa que talvez o tempo, vestido
como vida, permita confessar e fazer verdade, a
solidão branca. s. d’o.
21.10.04
pela sombra de heidegger. o tempo conduz à consciência do erro. por isso, o horizonte não é a morte. é, antes dela, a aprendizagem. 3.
20.10.04
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, xvi. a noite, a má noite, acontece quando alguém olha em torno e não vislumbra ninguém, inclusive si mesmo. s. d’o.
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, xv. é um engano perguntares a identidade dos teus demónios. os teus demónios não são os teus demónios por serem demónios. os teus demónios são os teus demónios por serem teus. s. d’o.
19.10.04
por contra. o não é um dos raros factores que calibram a virtude. é por isso que a contradição e o desassosssego da contrariedade – de que o erro é apenas uma forma – são condição de juízo, de aprendizagem. 3.
18.10.04
capítulos de uma geografia dos medos, iv
corpo
onde nasci ensinaram-me a não
regressar ao corpo, por a acusação
de nascer ser um princípio nativo
cravado na carne do qual, desde a
origem, não há abandono, permitido
ou prometido.
mas aqui, na distância que me fecha
interior, permaneço o corpo devolvido
que sou. sem medo da vontade de a
a ele regressar todos os dias, como
regresso. s. d’o.
16.10.04
fighting club. john jay, no quarto the federalist paper, estampado originalmente a sete de novembro de mil setecentos e oitenta e sete, n’the independent journal, fez menção às “guerras não santificadas pela justiça ou pela voz e interesses do povo”. o que significa que, como também michael walzer pretendeu mais tarde, muito mais tarde, há guerras justas, guerras em que se tem de combater. renunciar à luta pode ter como consequência a capitulação da liberdade. pois é para preservar a liberdade que se inventou a justiça. 3.
15.10.04
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, xiv. a boa fé e a responsabilidade decorrem também do facto de não se crer em divindades de qualquer tipo, engenho ou alcance. s. d’o.
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, xiii. não crer em deus é um dos actos que confere liberdade. s. d’o.
14.10.04
conceptualizar. existe uma perplexidade associada ao processo de realização dos conceitos. quando se realizam os conceitos, ocasiões há em que se é surpreendido: a realidade não é compreendida pelo respectivo enunciado. o que significa que existe um de dois problemas, ou de materialização ou de reportagem analítica. 3.
13.10.04
obreira
inclinas a força à obra
e fazes. e, fazendo a obra,
fazes-te também. mais
mulher, primeiro, e
comandante de ti, depois. s. d'o.
12.10.04
escala. cada um é a verdade que o tamanho lhe empresta. 3.
11.10.04
face to face
na face embrulhas a síntese
do corpo.
no corpo condensas o transporte
da vida.
na vida traduzes a terra
em fruto.
no fruto colhes a semente
do retorno.
no retorno abandonas-te
à fuga para ti.
na fuga para ti és a tua própria
face. s. d'o.
9.10.04
demanda de si. procurou-se no refúgio, no porto que outros chamam corpo, mas percebeu não estar ali. aquele é o seu domicílio, a concha onde sabe poder recolher-se, mas não era lá que estava. poderia, na procura, encontrar-se ali, por ser aí que se procurou. porém o que sucedeu foi que ele notou o lugar, embora não o seu espectro. compreende-se. a ausência não se encontra. sente-se. 3.
8.10.04
desejo
o desejo não é um paralelo, um
constante liso, mas uma projecção
que invade o espaço habitado, numa
vaga, capaz de reunir e denunciar o
retábulo do tempo construído em
matéria.
são os teus olhos, os teus lábios,
a tua face despida.
mas já não é de mim trair-me ou dar-me
ao desejo. sinto-me já mais do que sou,
não inocente. e capaz de, com a solidão,
simular a sua suficiência. s. d'o.
7.10.04
variação sobre um tema de hopper (nightawks, 1942)
nocturama. a noite tem uma fúria incontida em si. os sons que dela emanam troam num silêncio longo, em vibratto, até que o fulgor se prolonga inexacto, para além de si, como tranquilidade. quando a madrugada avança, contra, é já o zodíaco a obrigar o mundo à sua ordem dita, sem surpresa. e acontece o que tem que acontecer, o que tem a força que faz acontecer. o sol, nas suas voltas, jamais tropeça. há-de aparecer. e é isto o que, depois da breve solidão nocturna, se diz ser o destino. ou a manhã. 3.
6.10.04
credo dolor
não é questão a dor em que
acredito. portanto, não és interrogação
que eu diga minha. s. d'o.
5.10.04
a pã ciência e os falling angels. para o aprisionar, fecharam-no numa moldura. deixou, assim, de cair consoante a sua vontade. ele interpretou este gesto como prometeu, sentiu-se agrilhoado. mais incompreendido, o autor da prisão sentiu-se divino, por ter descoberto uma forma de contrariar a gravidade. 3.
4.10.04
2.10.04
cinemarginalia (suite de variações sobre big fish)
o fruto vermelho. há árvores que murmuram a vida que dão, sem suspirarem por mais frutos ou por si. 3.
1.10.04
gestos mortos
os gestos que não se dão à confissão, a
que não se empresta corpo, são a
censura magoada da liberdade ou
da palavra. s. d'o.
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