30.9.04
cinemarginalia (suite de variações sobre big fish)
escala. somos semelhantes no encontro, assim como somos a verdade que a diferença nos empresta ao tamanho dos passos. 3.
29.9.04
da natureza é a força
da natureza é a força que te
faz e não o distante horizonte
em que te alcanças.
confesso, sem confessar, sou mais
lunar do que solar, o negro da
luz, não a sua sombra. sou, vingado, a
lâmina cravada na carne, lâmina que
traça o caminho mais exacto para
ti. e, no seu fio, sou ainda a face
cortada, sem ordem, o enunciado
devolvido para ser dor. morte. s. d'o.
28.9.04
cinemarginalia (suite de variações sobre big fish)
running to stand still. nem sempre corremos contra o tempo. vezes há em que corremos pelo tempo, pela fantasia da necessidade das nossas botas. 3.
27.9.04
o que as palavras disseram
do sol, quantos compassos
eternos te cercam.
o testemunho de nenhum
sopro.
a vontade nas mãos e no
fim.
o sacrifício das asas.
os destroços semeados na
paisagem, como se fossem
a composição do próximo
ofício.
depois, nenhum sopro ainda.
nenhum beijo.
nenhuma fome.
a noite sai, metamorfose,
não acaso.
permaneço-te estranho, como
no início, sem ditar a medida
dos compassos eternos que
te cercam.
saio com a noite.
nenhuma técnica no gesto,
apenas um exemplo de
ausência ferida, de
natureza incerta.
foi o que as palavras
disseram. s. d'o.
26.9.04
urgência. há formas de vida que são um tipo de opressão silente, quase indolor, como se fossem uma natureza. encerrados nelas e por elas, muitos gritam em silêncio, gritam calados, porque lhes falta a voz ou porque a sua voz não tem alcance suficiente para ir além si-mesmos e atingir o exterior, o lugar da audiência. é por isso que importa ouvir as spoken words de lydia lunch. é por isso que importou ouvir as spoken words de lydia lunch. 3.
25.9.04
exercícios de paráfrase, ii
o diabo de bons costumes. numa das entradas do dictionnaire infernal, de collin de plancy, é reportado, assim, o caso de um diabo compadecido. um dia uma bem moldada rapariga foi internada num convento. nesse internato, a lavoura exigia muito dos corpos e, por isso, começou ela a perder a forma e a ficar como as demais tementes entregues ao bom deus. vendo a degradação da sua beleza, um demónio apossou-se de um ganso, propriedade dos pais da rapariga, e foi oferecê-lo. súbito, recusou ela a referida oferenda por a mesma haver sido tomada sem consentimento dos seus donos, seus progenitores. sequer o conhecimento da origem do ganso a fez vacilar na decisão. conformado, o demónio devolveu o ganso aos seus legítimos donos. 3.
24.9.04
ecce homo
começa a jornada a acontecer e ele,
rendido entre todos os mundos, não
pretende regressar. desconhece a origem,
é-lhe indiferente o apelo da verdade, não
lhe toca a vontade de ser diferente.
continua a caminhar no labirinto
e, como deus, a decobrir-se pelo
caminho. continua a caminhar e a fazer-se
a geografia de um corpo permanente, onde
o que recorda, um continente chamado
outono, é-lhe memória suficiente ou toda. s. d'o.
23.9.04
exercícios de paráfrase, i
coincidências. na noite feita entre três e quatro de julho, donathien alphonse françois de sade, marquês de sade, em razão de distúrbios por ele fomentados, foi compulsivamente transferido dos calabouços da bastilha para o sanatório de charenton. conforme ditado por édito ministerial, no instante em que saiu, nada de seus haveres e pertences, para além de si próprio, pôde levar para o destino. foi nu. desse facto tratou o próprio marquês de sade de informar a sua consorte, de quem a fortuna o havia apartado, apelando-lhe na circunstância que resgatasse o património deixado à guarda dos oficiais da bastilha. acontece que a senhora de sade, muito entretida na sua ociosa vida e tomada no costume de baixar ao confessionário, apenas no dia catorze se deu ao cuidado de ir levantar os haveres do marquês, entre os quais havia quinze cadernos manuscritos da respectiva doutrina, derradeiramente arrumados para impressão. mas o dia catorze foi precisamente o dia em que a turba tomou a bastilha, matando os administradores da casa e pilhando o que cotação tinha para os gentios, tudo, incluindo as propriedades do desafortunado marquês. assim, portanto, se perderam documentos de incalculável valor e civilização. o que significa que nas tristes coincidências, naquelas que tecem o fado, a história tende a ser feita conforme a vontade ou a disposição das mulheres. é também por isso que frequentemente a história acontece tragédia. 3.
22.9.04
o que acontece
o que acontece quando a paixão
nos trai a outra flor com o
mesmo nome é a confirmação,
não o regresso. s. d'o.
21.9.04
cinememorabilia (suite de variações sobre eternal sunshine of the spotless mind)
que fazer?, se. que farias tu?, se descobrisses que roubaste a tua própria memória dela. 3.
20.9.04
descobre-se para ser solidário
descobre-se para ser solidário
e mais solitário, por a solidão
ser a propriedade que consegue
partilhar sem a dor da perda que
pode. s. d'o.
18.9.04
cinememorabilia (suite de variações sobre eternal sunshine of the spotless mind)
biopic. pode alguém descobrir-se? revendo a sua vida condensada num filme. 3.
17.9.04
acaso és deus?, imortal?, perguntou ela
não me peças para morrer por ti
porque não morro, disse ele.
porquê?, acaso és deus?, imortal?,
perguntou ela. s. d'o.
16.9.04
cinememorabilia (suite de variações sobre eternal sunshine of the spotless mind)
os corpos encontrados, ii. nesta memória, quem és tu?, apagado, no meu abraço. 3.
15.9.04
o incrédulo
disse-lhe não te amo. repetiu
não te amo. e ele continuou a não
acreditar. também não acreditou
quando, depois, ela lhe disse amo-te.
e, para o convencer, se suicidou. s. d'o.
14.9.04
cinememorabilia (suite de variações sobre eternal sunshine of the spotless mind)
os corpos encontrados, i. a serenidade é o lugar, a têmpera fria, onde nos conseguimos encontrar plenos. 3.
13.9.04
máscara. ela já não o ama. e finge. sem fingir. como antes fingiu. o amor. 3.
solidão
estou sentado, sem proximidade ao
domicílio de ti. sepulto os medos
neste lugar. e fecho as mãos com eles.
não mais o vento vence o inconfessado
distúrbio do sossego. o deserto pode
começar aqui. mas aqui é ainda
apenas praia.
não é a ausência. pela dúvida, estendo as
mãos, dadas, abertas. nada têm em si,
para além do vazio permitido pelo
abandono que as faz breves. preenche-as
um desejo de revolta, a vontade de te
mancharem. mas o que as preenche
habita-as caladas. s. d'o.
11.9.04
santuário. ontem, sobre o chão, o nosso chão, o chão da terra, precipitou-se uma cápsula com o sol em vento. pode dizer-se que é uma outra forma de o alcançar. que é um outro modo de o colher. porém, indiferente ao caso, a casa dos anéis permanece no seu exercício de suspensão, como se fosse um abrigo distante de ícaro. 3.
10.9.04
sul, o encontro
um homem, talvez ainda rapaz, cerca-se demasiado
de si e fica sem perspectiva para o pátio andaluz, onde
onde refulge o feitiço com que ela, em segredo,
invísivel, o toca.
quase acontece a sua ressurreição quando percebe
que ela é o lugar, mulher, que deseja habitar. foge
para o sol, deixa-se embaraçar pelas ruelas do
casco velho. mas cai o véu antes que o fulgor
se anuncie, esperando as consequências
que vêm com o regresso a casa.
morrer é a outra das opções. s. d'o.
9.9.04
anúncio do fim. conduziu os dedos pelas teclas e escreveu until the end of the world, o título do post. depois, largando uma vez mais os dedos sobre o teclado, compôs o corpo do texto. lacónico, é o fim., assim lavrou a composição. o que queria ele significar com esta mensagem?, se, depois deste post, continuou a escrever posts. que o fim não acontece necessariamente quando se anuncia. 3.
8.9.04
para além do necessário
vamos sempre para além do necessário. um
dia, na noite, os corpos combinados, sem
cansaço, cresceram um para o outro.
esquivaram-se ao encontro, mas tocaram-se,
leve, levemente, como não se tocassem.
um veleiro passou a barra da marina, em navegação
lenta.
tudo (re)começou, como se fosse um desvio
do princípio. outro cigarro morto no
cinzeiro. os corpos jogados pelo ritmo
sincopado da música. os corpos timbrados
pelo tempero do sol, a descobrir-se nocturnos,
fingidos numa intimidade que não lhes acontece. s. d'o.
7.9.04
amanhã é sempre longe demais. sentou-se e pensou para si, como disposição habitual, vou trabalhar. amanhã vou morrer. eu sei. e, elucubrado isto, investiu ele as suas mãos sobre a matéria-prima. era necessário produzir mercadoria antes que a noite viesse em serenata. pois o mercado não dorme, é permanente. noctívago também, portanto. 3.
6.9.04
sons de uma noite de verão
o mar carrega os seus murmúrios para
a margem, revolve-se. há a ele uma distância
preenchida de noite, de ruelas, de dúvidas
que são os passos para ele.
em casa, o lugar da circunstância, quatro
jogam às cartas. elas, pelo que revelam,
já sem muita convicção. mas vão a jogo,
jogo após jogo, o que não lhes disfarça
ou dissolve o sono.
no cerco, a música caiu em silêncio. já não
se ouvem as canções do irish pub. há acusações
de renúncia. há quem lerpe, muitas vezes eles, um
deles. o jogo não acaba. o jogo ainda não acabou.
como se fosse uma imitação da vida. s. d'o.
4.9.04
do lugar demandado. chegou ao lugar, não sabia se ao lugar demandado. fechou o mapa, segurou-o, como se o guardasse, na mão esquerda. o lugar era inóspito, cercado por um extenso horizonte de vales e montes. ali, havia apenas uma placa, o único indício de civilização sobre aquele chão. a placa, para além de um símbolo indistinto – não se percebia se era uma cruz ou uma seta –, tinha em si, em caracteres de baixo relevo, talhados na madeira, a seguinte inscrição: matadouro ou o bordel dos pobres. era aquele lugar, onde nada mais se destacava diferente da paisagem, que ele procurava. o sangue sobre a terra, desperdiçado ali, não sugeria engano. 3.
3.9.04
na esplanada
posso perdoar a esplanada, por ser o lugar
onde somos fiéis, vivos. a ziggy stardust não.
outro bourbon, se faz favor. preciso de
esquecer o que (me) está a acontecer. s. d'o.
2.9.04
aproximação à loucura. um homem, desconhecido, aproximou-se dele e disse-lhe se soubesse de mim o que sei do mundo, continuaria, ainda assim, sabendo quem sou, sem saber o que sou. sabe o que isto significa?, perguntou-lhe, depois, o mesmo homem. ele respondeu é esse o nome da dúvida das coisas, não é?. e, dito isto, continuou, indiferente, a perseguir o seu caminho, a aproximar-se do destino. 3.
1.9.04
tempestade
um dia o calor trovejou. caiu o invólucro de
saturno. e no chão nasceram lágrimas, temperadas
com mostarda, com maionese e sem tristeza. s. d'o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).