24.1.13
não testemunhou o estertor dele. no momento
em que soube da notícia recordou a cesura,
o pai do pai quando tentava soprar através da cana
na direcção do fogo, as sombras queimadas
na parede da cozinha, combinadas com as conversas
de domingo já caído. é neste lugar tangente às horas
que pendem na espera e a fazem, um lugar recomeçado,
na transfusão do que afasta e aproxima, desejos
à parte, é neste lugar que ele está ou, não estando,
imagina estar, onde nenhum sacramento o pode
recomeçar. não há andaimes sobre o corte. a terra
já tomba numa janela que não abre. o corpo apertado,
o desperdício e o antídoto, o nervo e a corda na oração.
foi assim, dizem que é sempre assim, que continua. s. d’o.
22.1.13
extinção
erva, vento chão, perfume lento. também os pés
vão demorar a chegar. ultrapassam a tarde, alastram
o contágio, passo contra passo, o medo, o vinho.
os pés vêm descalços, anunciados assim. ele espera-a,
tem os joelhos travados no chão. é nessa posição
que aguarda e cumpre a promessa. sabe que tanto
do que teve perdeu-se consigo. assume o prejuízo,
não quer absolvição. de quê?, se antes algo o vinculou
ao privilégio de começar, concedendo-lhe quase a eternidade
repetida em cada manhã. agora tem o corpo a entardecer,
quieto na lâmina, a pele sem respiração, como quem sente
a morte que veio antes de a morte chegar. e o mais que vem,
que venha devagar, deseja ele, talvez desejo final, agora
que vê que ela já está próxima e que é para si que chega. s. d’o.
10.1.13
uma traição tão quieta, quase sem parecer
traição, dizer que não te conheço, dizê-lo
três vezes sem dizer, com convicção,
e estar disposto a repetir, se necessário,
se a traição exigir. s. d’o.
8.1.13
alegas a alma. conheço-te para saber que, quando e quanto
tu podes, me engano, muitas vezes e muito, às vezes mais.
não é apenas o lugar como acontecemos que é estranho,
sou eu, repetido assim não só na confirmação mas também
na dúvida, antes, no domicílio onde não havia a pessoa
pela qual somos enunciados. falta-nos o nome, o que nos permite
a essência. não somos como na canção why can’t i be you?
que dançámos tantas vezes. parte da culpa é nossa, só nossa,
parte é minha, toda minha, mea culpa, mea maxima culpa,
sem a mão colocada sobre o peito, a acusar-me. gozo-a
como propriedade, à queima-roupa, no interior da dívida
que posso. welcome to the machine, o assalto é sem ironia.
alegas a alma. conheço-te para saber que, quando e quanto
tu podes, me engano, muitas vezes e muito, às vezes sempre. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).