19.2.10
o espírito
sofri uma infância com demasiado deus. toda a força da apresentação que faziam dele era estranha. a dificuldade que tive em reconhecê-lo tornou-se uma modalidade de auto-recriminação, uma culpa sobre as outras culpas que decorriam já daquela culpa. porém, com o tempo, para mim nada disto fez diferença. assumi a culpa de ser e de crer assim, reiterei-a. ri. não ter conhecido deus foi o acidente melhor da minha vida. sendo culpado sem culpa, ainda sinto a culpa a desvanecer-se, porque não há inocentes. através da demora aprendi a perder, percebi a estranheza que me compreende. sinto que a culpa que tenho não é em vão, é maior do que eu. a solidão acrescenta-me, cresço devagar. e, embora nunca tenha preferido a perfeição, a geometria leva-me a lugares diferentes. s. d’o.
17.2.10
a possibilidade dos lugares, iv
purgo as neves. há muito tempo que tenho dificuldade
nos negócios do espírito. s. d’o.
15.2.10
a possibilidade dos lugares, iii
o mundo, a fissura pela qual a palavra o abre. na agressão, na salvação,
a velocidade moderna, a beleza das coisas não ditas e o futuro. já nenhum
estabelecimento encerra para balanço. as prioridades continuam a ser
as banalidades do costume. uma mecânica só, apenas física, o défice
orçamental padrão. preocupa o desemprego, a pobreza, a fome, desemprego,
pobreza e fome dos outros, sempre os outros, enquanto os outros, eles,
preocupam-se simplesmente com a vida deles, com o lugar deles. s. d’o.
5.2.10
a possibilidade dos lugares, ii
a vida é fácil, eu não acredito, é fazer as conjecturas certas, se assim
fosse seria demasiado fácil, é esquecer a cada instante a hipótese
de não haver substância ou subsistência sob os teus pés, continuo
a não acreditar e a não ter motivo para acreditar, é confiar na colisão
com as horas. olho os pulsos, faltam-lhe as marcas. talvez esteja a ver
mal, talvez necessite de outra educação. a culpa não se apaga assim. s. d’o.
3.2.10
a possibilidade dos lugares, i
excepto aqui. rés às vidas, colhes o espaço, colheita do outono
de dois mil e nove. aqui está assinalado, mas é-te indiferente
tanto o sinal quanto o lugar para o qual o sinal remete.
talvez possamos fazer algo diferente, conversar, por exemplo.
talvez eu possa dizer tu és rei porque combateste muito
e venceste muitos, ainda que isso não seja verdade. podemos fingir
a hipocrisia, ninguém há-de reparar. s. d’o.
1.2.10
nada para a noite
as etapas e as regras da habitação exigem respiração.
há muito tempo que habito esta casa e apalpo as paredes
para extrair delas a ocupação. separo-me assim, por dentro.
não lamento a cegueira por que me confesso, sei que não vejo,
simplesmente não vejo. para além disto, por não ver, para mim
o tempo tornou-se o mesmo, noite permanente e sem auxílio.
où va la lumière quand on l’éteint?, não formulo esta pergunta,
atalho para a condição de goethe. a respiração une-nos à morte
e cada um de nós ronda a distância entre tanto e quase, explora
a hipótese das paredes, a guarda que providenciam - neste caso
uma possibilidade como qualquer outra.
dizes há uma mancha acima, acima de quê?, acima de amo-te,
não consigo entender, como se fosse um vaso. janeiro começa
sempre em dezembro. é ainda a noite longa. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).