30.10.09
oração do atraso
o tempo tornou-se proibido. senhor, por minha culpa, por minha tão grande culpa.
o título e a gradação não me impressionam. respiro do mesmo modo, devagar.
isto não parece, mas é o meu quotidiano, um exercício de devastação com ritmo
mais elementar do que matricial, mais modelado do que existencial ou médio.
às vezes esqueço que a mão serve para declarar isto, raso, arbítrio conduzido
por uma instância sem certeza ou soberania. a mão como veículo de emancipação,
libertação em relação às coisas e ao corpo. aceito ser acidental, a superfície
exposta. a minha mãe aconselha-me o tom, moderado, meu filho. calo mãe,
tu não me fodas. eu sei que é para o meu bem, mas e a urgência?, mãe. o silêncio
do meu nome próprio, uma rua, um brinquedo e o mapa desse tempo. não posso
continuar aqui, não tenho eternidade para continuar a ser teu filho. eu ponho
a mesa, ordeno os talheres como tu queres. os prósperos e a corrupção, não penso.
a doença entrou-nos em casa, estamos a aprendê-la. não podemos morrer assim,
justos ou recompensados. não merecemos. mãe, apetece-me partir as estátuas
dos teus deuses, daqueles que veneras, nos teus joelhos e nas tuas orações. mãe,
puta que pariu os teus deuses. esta alvorada será minha, será nossa. comunico-te
o respeito que tenho por ti. mas a verdade, que talvez não seja a verdade
mas tão só o que é, é que eu já estou atrasado, não posso esperar mais. s. d’o.
28.10.09
kant morreu
deixei de perceber. demoro a perceber, percebo
tarde, depois de os outros perceberem, às vezes
perceberem tudo, de modo que para nada serve
o que percebo, porque, demorado, é como se eu não percebesse.
sofro, não muito, sofro. sofro apenas mais ou menos.
cálamo na minha mão, eu preferia láudano. talvez uma inundação
possa salvar-me, atrasar os outros. o inverno é efémero
como o amor ou o verão. oxalá chova muito. s. d’o.
26.10.09
o crepúsculo das ideologias
as vozes que acendem, as orações não para servir
a romança, com a esperança e a ânsia de um assento
comum, não consensual, universal, tirado dos lugares
e do tempo, sobre todas as circunstâncias, sobre todos
e para todos, uma voz divina que não é de deus,
uma voz de concílio, capaz de demorar e ancorar
ao invés das dúvidas. todo o ressentimento que pode
uma ideia para a aproximação. depois do combate
a desunião é maior. uma ideia só, triunfante, e
separamo-nos por ela. é impossível que sejamos todos
iguais. iguais, incluindo os mortos. somos tão poucos
para uma ideia só. s. d’o.
16.10.09
o rapaz que queria ser usain bolt
este é o momento, o meu corpo despegado
de ti, o meu corpo entregue, sem promessa,
sem guia de remessa, e simultaneamente o tempo
afasta-se de nós, de ti mais lento, de mim
mais rápido. agora estou nu.
morro sem espera, súbito, mas demoro a palavra
final, para sobreviver um instante mais
no catálogo dos instantes iguais, repetidos
tempo após tempo, sem cobrança. espero por ti?
não, vou jantar fora, não esperes por mim.
estou a ver televisão, um homem voa mais
do que os outros. esqueço a tua resposta,
já não espero por ti. antes já não esperava
por ti. s. d’o.
14.10.09
acto décimo quarto
perguntas-me a correspondência, amas-me?, e eu afirmo-a,
sim, amo-te, para não desiludir-te. seria desagradável se fosse
sincero neste momento, em que partilho a cama e o corpo
contigo. seria desagradável, assim como seria cruel.
e eu também não quero ser cruel. custar-me-ia sê-lo.
por isso confirmo o amor que não tenho e não sinto
enquanto copulamos. há economia neste acto, um acto
de vocação, não de misericórdia. para ser sincero,
não quero perder este momento contigo, não quero
desperdiçar o orgasmo.
depois canto i don’t have a hawk in my heart para experimentar
o prolongamento da ilusão. s. d’o.
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i don’t have a hawk in my heart é um verso do refrão da canção «thirsty» (in sad songs for dirty lovers, brassland records, 2003), da banda the national.
12.10.09
saber dizer o conceito, o preceito, o lugar absoluto.
mastigar devagar, provar o vinho, limpar os lábios
com um guardanapo de pano, partir a louça. já são raros
os que têm uma felicidade assim, analógica. s. d’o.
2.10.09
reportório dos chamamentos
onde há deus, cheiro o sangue da menstruação, vejo sombras
a moverem-se. aproximo-me para cheirar e ver melhor. esqueço
alice, falho fantin-latour. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).