18.11.06
modern times. uma das propriedades e uma das consequências da modernidade é o desafio das suas formas e dos seus limites, constituindo-se, enquanto dinâmica, um processo de auto-superação. 3.
17.11.06
raconto de mim, em si
no meu corpo sou o regresso
e ainda a ausência, não o conforto
ou o encontro. s. d’o.
16.11.06
15.11.06
perdição
do mundo é um quadro que já não vejo,
adiado noites e noites, tantas quanto
o tom nocturno permitiu. do mesmo mundo
é também uma invisibilidade vaga, em que,
a noite e sido, me envolvo e devolvo.
ao seu corpo não sei dizer não.
é essa também a minha condenação. s. d’o.
14.11.06
da paisagem. a paisagem é o tempo devagar constituído mostra e sedimento, sedimento que nos enfrenta e transcende, tanto em anterioridade quanto em posterioridade. 3.
13.11.06
post mortem com suicidas
nenhuma virtude manifestava
ou disso era próximo. lia xadrez
e emprestava deus aos vizinhos.
todos o julgavam estranho.
eram estranhos, afinal, os outros,
também. s. d’o.
11.11.06
paraísopolis. o grosso da vida dos comuns, todos nós, é sobre um lastro de normalidade. lastro inteiro e segurança, que levanta os seus limites para se transformar num aquário onde se comunga o verso e o inverso, investindo-se entre a economia e o excesso, num jogo e numa colecção de quotidianos e dos seus sobejos únicos ou repetidos. é assim que, tão edénicos quão banais e pela ilusão, (nos) sobrevivemos paciente e permanentemente. 3.
10.11.06
condição
a mesma agenda. outro nome, outro lugar,
outra data. o regresso ao útero, gesto
abundante. uma casa sem tempo, primordial.
e nada onde guardar os despojos, a gramática,
para sempre, a não ser no corpo devolvido
e a perder, origem e abandono. s. d’o.
9.11.06
o regime da ironia. em tudo o que é para além da evidência, no jogo das suspeitas e dos alcances, a ignorância é o máximo de justiça que se consegue, não necessariamente o que se manifesta. 3.
8.11.06
o ventríloquo
à leal confessou o impasse, que as muitas vozes
iam martelando e exaurindo. são as pequenas coisas
que te antecipam, senhora, como atracção e ainda
transgressão. pretendeu guardá-la em cuidado
com estas palavras. porém, suspeitando-as não
suficientes, acrescentou algo sobre o excesso,
algo que não terminou. porque, súbito, apagou-se
a sua respiração. uma frase ficou interrompida. s. d’o.
7.11.06
da arte. de que depende a arte?, senão do excesso. sim, a arte é um produto do excesso. no entanto, não é tudo o que decorre do excesso que é arte. a arte é o produto do excesso que não é desperdício. ou seja, a arte destaca-se - e concebe-se - pela sua inutilidade, pelo facto de se bastar, não pelas perdas que obriga ou implica. 3.
6.11.06
perfil a contra-luz
o edifício, a sequência, o significado,
o recital e o espólio dos vagares.
a maternidade intacta. o incêndio
e a precisão do contacto. a evocação
de artaud, a fragância nouvelle vague.
dizem a loucura, dizem-me a loucura.
porquê? sucedem-se as vítimas,
a mesma prudência, o documento único.
ninguém sabe onde está o arquivo. o medo,
ainda o medo. apocalipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse, lipse.
o mercado e o cabaret. a máquina que faz tilt.
o traço eléctrico e a convulsão, sem revolução.
a pequena lança, a trajectória, a narrativa,
a radiografia, o processo de revelação.
que nada é abstracto, dizem. que nada
é concreto, dizem também. que é o véu,
que é o enunciado, que é o modo obscuro
e sossegado de tocar. a violência, o caso visado
e habitado. será especulação?, será banalidade?
será bem?, será mal? o espelho, a potência,
a imagem. fotografia, dizem fotografia.
dizem lúcida. dizem câmara. uma réplica, é
uma réplica. desconhece-se quem seja
que detém a matriz, onde tenha sido depositada.
no andar de baixo, o porteiro
já não sublinha os destaques. saiu.
também deixou de frequentar os leilões
da sotheby’s. não há herdeiros.
não há tapeçarias expostas nas paredes.
no ttrês ouve-se tom waits em mptrês.
permanece o risco sobre as convenções.
antes o rádio estava sintonizado na antena três,
agora o rádio está sintonizado na radar.
sempre frequência modulada e estereofonia.
tom waits. o tempo ainda encena a demora
e o tecido melancólico da excepção que,
sob a necessidade, suscita o caminho,
íntegro, para a morada da profanação.
agora. já. não se pode chegar tarde.
a luminosidade desvanece-se em crepúsculo.
não se pode chegar tarde. é-se polaroid.
já não se pode chegar tarde. s. d’o.
4.11.06
identidade e expressionismo. sobre alguém, as mãos dizem mais do que a face. com maior expressão da sua identidade, maior do que a expressão das mãos, apenas há o silêncio. o seu silêncio. 3.
3.11.06
vagamundo
e, como dizer por palavras ainda tuas?,
foi de mim que foi o que me levou,
que me levou além da frente interdita,
onde há um espelho capaz de me confrontar
com a minha ausência. s. d’o.
2.11.06
um crespúsculo. as matérias morrem ainda mais quando, contra a sua condição tangível, não são tocadas. 3.
1.11.06
acontecer a invisibilidade
talvez apenas quisesse voltar para a cama,
adormecer vigiado pelos seus demónios. ou
talvez não quisesse e tivesse permanecido
à espera que alguém o acusasse e, sem culpa,
formada ou outra, também sem defesa, aceitasse
submeter-se a uma condenação, por disposição
ao ritual da justiça, à vida.
guardou-se calado, sem gestos. pela quietude,
afirmou a dignidade do seu abandono. sem piedade.
sem misericórdia.
por um acidente, coincidiu consigo, avançando
à condição de outro nome. silente, quieto,
entregou-se à sentença, deixando a presença
da morte para que fosse vista e para que os outros
se encontrassem e distraíssem enquanto ia
para além. encontrados e distraídos, ao voltarem-se,
os outros não tiveram tempo para lhe ver as costas.
ficaram. s. d’o.
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