30.11.04
cronómetro. em mm 51, composição de kagel, para metrónomo e piano, o ritmo, enquanto exercício de tempo, encontra-se simultaneamente na sua compassada medida e no silêncio acordado das cordas percutidas. 3.
29.11.04
não saber
de onde emerge esta traquilidade?
que se faz urgência permanente.
sigo a pista e o que (re)encontro
são os teus olhos. não sei se
é a confirmação do destino, se é
a confirmação do engano. não sei. s. d’o.
27.11.04
labirinto. fez a fortuna, roda que todos os destinos pode, ser pasífaa esposa de minos, grão rei dos chãos e das gentes de creta, que um dia haveria também ser um dos mestres do juízo do tribunal do lugar do inferno. mas não só a fortuna tocou pasífaa. igualmente o sortilégio a alcançou, ditando, conforme superior vontade de vénus, que ela padesse de desconforme paixão pelo touro branco que neptuno, filho de saturno, havia ofertado a minos, para confirmar e consagrar o seu domínio. fruto dessa desmandada paixão, concebeu e pariu pasífaa uma monstruosa criatura, híbrida, misto de humano e de bovino bravo, baptizada minotauro, a qual ordenou minos que fosse encerrada num imponente edifício, construído de intrincados e ilusivos caminhos, que, para além do limiar de entrada, tinha uma única esquiva. foi esse edifício, baralhada armadilha, arquitectado pelo engenho de dédalo, o qual, por haver sido conivente no encontro de pasífaa com o touro branco, foi encerrado, junto com o minotauro, na obra que concebeu. porém, logrou dédalo de aí fugir, com ícaro, seu filho, socorrido de asas por si manufacturadas, juntando penas com a força do cimento de cera. 3.
26.11.04
teu nome, chão para onde me inclino
das fragas em que se conquista, em
névoa ou manhã, ele modera a ira
daqueles que já perderam a súplica
e deixaram de oferecer ao altar de
sândalo as suas paixões.
e surge tempestuoso o teu nome,
o receio que freme e habita a
submersa vontade, o declive
do teu olhar, chão para onde me
inclino. s. d’o.
25.11.04
satélite da casa dos anéis. do casting sideral destaca-se saturno. e no seu cerco, por lua sua ser, entre outras, gravita, como um planador cósmico, tétis. 3.
24.11.04
voz
o teu lugar, o medo, emudece.
porém, ser livre é ser a soberania,
é ser a voz. s. d’o.
23.11.04
self made. o eu é um pronome impressivo?, expressivo? ou reflexivo? 3.
22.11.04
20.11.04
mundo da canção. cada canção, se se fixa no património de uma identidade, é uma forma de preencher uma mutilação ou um vazio original. e é isso, depois, que faz a vontade de concertos. 3.
19.11.04
o soberano demónio chamado solidão
de entre os soberanos demónios,
o mais íntimo, a solidão, não
toma pacientes as suas vítimas.
tão pouco as envolve, de dentro,
e, daí, as conquista, como se
fossem oferecidas ao exílio de
si.
alguém, quando se faz só, é
consigo mesmo que se encontra.
não com a imagem de estar só. s. d’o.
18.11.04
cinema. o filme, na sua forma revelada, película rodada em sala própria, é a mais verdadeira das montras da vida. 3.
17.11.04
a sentinela
que trazes?, quem és?, tu!, mulher!,
inquiriu a sentinela em voz de ordem.
ela, a mulher, indiferente, continuou os seus
passos. acrescentou ainda mais quatro
depois de a voz dele, a sentinela, se entender
apenas em eco. desafiou-o.
provocado, ele, a sentinela, soltou o chicote e preparou
o ataque. ergueu a tocha para iluminar
a face da mulher. percebeu que não era
uma escrava. percebeu-lhe o perfume, uma
distinta essência, a perfídia da beleza.
suspendeu, então, a sentinela, o gesto ofensivo.
constato que apaziguas o ódio que é
íntimo do teu peito, foi o que ela, a mulher, disse
antes de continuar os seus passos,
antes de confirmar o afastamento. e
ele, a sentinela, sentido nas palavras ditas,
deixou-a, a mulher, partir. s. d’o.
16.11.04
comédia divina. ilustrar a hipótese do inferno, como em studio per la divina comedia, de dalí, é compreender a condição humana como tempo possível. 3.
15.11.04
duas vozes
a voz de um corpo não cala
a miséria mais longa. a outra
canta. mas os seus braços não
seguram a vantagem.
e os demónios, conseguidos
aliados da fome, ressurgem
antes da madrugada, para
serem essa vantagem não
segura. s. d’o.
13.11.04
sopro sensível. por que atordoa a força e o alcance que as vozes, em particular algumas, têm? é uma pergunta que não convoca resposta. convoca, sim, concerto. 3.
12.11.04
alucinada evidência
não vos consinto mais verdade
do que à fome!, sentenciou ele,
exaltado, para a audiência de
papoilas opiáceas que, para além
de si, o cercavam. s. d’o.
11.11.04
melodia cósmica. a cassini-huygens continua a ensinar os mistérios de saturno. suspeita-se agora que o impacto de metereoritos nas massas de gelo que compõem os anéis produz um conjunto de sons de tons diversos, como se fosse o ensaio de uma paleta sinfónica. é a natureza a acontecer música onde deus não alcança ou constitui pauta. 3.
10.11.04
mecanicidades
dois instrumentos novos no armário das
ferramentas. sofisticados, parecem.
foram utilizados esta manhã no
conserto da máquina, o primeiro que
necessitou. a garantia já expirou.
ainda ninguém voltou para reclamar. e
eu vou ouvir black angels death song. s. d’o.
9.11.04
zeit. como pode o tempo, recurso eterno, faltar a alguém? 3.
8.11.04
danação
há um murmúrio que cresce dentro de mim
e me transborda.
e sopra sou a tua raiva, sou a tua ira.
e sopra sou o teu ódio, sou a tua paixão.
dá-me gestos!, ordena o murmúrio que cresce dentro de mim.
dá-me os teus gestos!, insiste o murmúrio.
resisto.
há um murmúrio que cresce dentro de mim
e tem um tom grave.
e exige-me sangue.
traz-me sangue!, clama o murmúrio grave que cresce dentro de mim.
sacia esta vontade que te preenche, que te faz por dentro, por dentro de ti, sopra, assim, o murmúrio grave que cresce dentro de mim.
resisto.
cresce um murmúrio grave dentro de mim
e sopra sou a tua liberdade.
liberta-te!, persuade-me o murmúrio grave que cresce dentro de mim.
sê o animal selvagem que és!, sê livre!, convence-me o murmúrio.
e emancipo-me. s. d’o.
5.11.04
encontro com cadáver
bom dia, disse ela. ele olhou-a sem nada.
sem temor, sem desprezo, sem diferença.
ao seu lado, uma folha tinha escrito: morrer é
uma forma de saudade que nos vence. s. d’o.
3.11.04
intimidade
todo o nocturno, o céu cheio de ruídos,
o homem a tentar esquecer quem é. a
geografia íntima é mais do que ele
pode dominar. por vezes perde-se no
tempo. mas nunca se encontra
ou reencontra no espaço. o chão em
que se suporta é outra coisa. umas vezes é
uma ilusão de fundo, outras vezes é uma
ilusão de princípio. e, quando assim, não
é já a geografia que o compreende, mas a
geometria dispersa, sem formas, sem
contactos, sem ilusões. como se fosse
um lastro perdido. s. d’o.
1.11.04
erosão urbana
há sempre uma sobra de saudade
nesta cidade. são mais os lugares
escondidos que nela constróem,
aumentam os estranhos que neles
se guardam e fazem vida.
porém, nesta cidade que permanece
há a nova hipótese do abandono.
mas cansa a fuga pendular, origem lisboa,
lisboa origem. por não ser essa a forma
de devolução que atenue a perda.
os lugares da memória são memória,
já não são lugares, os lugares. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).