31.8.04
variação sobre um tema de magritte (le fils de l'homme, 1964)
parternidade. quem é o teu pai?, perguntaram ao homem do chapéu de coco que passeava junto ao paredão, biombo do mar. o meu pai é o homem que constrói maçãs, respondeu ele. 3.
30.8.04
o início é o corpo
o início é o corpo, fechado na sua reserva.
não lhe sei a memória, não lhe sei muito. mas
sinto que começam a ferir os gestos
que não o tocam.
o início é o corpo. não lhe sei o espírito. sequer
o que vem depois. entretanto, já, quando ainda
é proibido o encontro, sinto que me magoam
os gestos que não se confirmam gestos
para ti. s. d'o.
28.8.04
variação sobre um tema de magritte (le libérateur, 1947)
fuga. a fuga não é um estado de liberdade, é a liberdade, solta, sem a condição da forma. é o processo sem limites. por isso, a liberdade, quando feita sensação, é um homem sentado com um espelho na mão, para além do qual, havendo luz, se alcança o reflexo de si-mesmo a acontecer. 3.
27.8.04
não quero ser a sorte
não quero ser a sorte, a incógnita
que se faz para segredo. pois não sei se
o segredo é meu ou nosso, se é franquia
ou miséria. sequer sei se é segredo. s. d'o.
26.8.04
variação sobre um tema de magritte (le thérapeute, 1937)
a cura. no regresso aos lugares da memória, uma forma de terapia, acontece não encontrar-se reconstituído o tempo original. por isso, é estranha a experiência da não dissolução da distância entre os momentos, o do regresso e o do registo. 3.
25.8.04
não sabes
não sabes o que não podes saber, mas será
que sentes o que eu, escondido, te sinto? s. d'o.
24.8.04
a condição manequim. a modernidade é um complexo de domesticação. traçar esta afirmação é repetir outros, é acompanhá-los com preciso atraso. ilustrar tal afirmação é confirmar a sentença por outra experiência, num outro ensaio chamado representação suficiente. foi o que conseguiu man ray. 3.
23.8.04
ela que passa
ela que passa
parece trazer o outono tomado nos braços,
será abraço?,
e não pára na praça. s. d'o.
21.8.04
glory days. onde habita a glória?, nos gestos?, nas coisas que, pelas mãos, traduzem a terra para a vontade? ou nos dias que já foram? 3.
20.8.04
a noite serve a espera
a noite serve a espera. suspendo os passos,
sento-me ali. guardo no escuro os pés
nus sobre o chão ainda cálido. vem o
perfume do mar, que, derramado, entra
em casa. arruma-se entre os outros
cheiros, entre os corpos, entre os
outros sons que vêm com a noite.
a noite oferece a espera e contagia. aguardo
com ela. olho o céu, na sua devolução
nocturna. percebo-lhe a forma enganada
de embrulho em que se suspende.
decido ficar. não me parece inquieta,
a noite. mas também não me entrega o
conforto da tua solidão. espero. espero
com a noite. espero por ti. velo por ti. e
pergunto (de) quem és?, quando dormes
sozinha. s. d'o.
19.8.04
quando o pódio não é o altar. há uma qualquer glória, celebrada, quando se ultrapassa o limite. era esse originalmente o sentido do espírito olímpico. porém, hoje o que se persegue não é o limite. é, sim, o êxito. o desafio, em paradigma, não é ir para além do alcance. é, antes, na circunstância, alcançar mais do que os outros. ou seja, o que desafia não é o limite, o horizonte, citius, altius, fortius. o que desafia são os outros, a concorrência, qualquer que seja o limiar da diferença. é por isso que hodiernamente a glória que acontece se desvanece brevemente. e é por isso que o olimpo permanece encerrado a novas admissões. não porque os deuses, todos, tenham morrido. mas porque o humano, demasiado humano, se extinguiu em si e se preserva apenas enquanto eternal sunshine of the spotless mind. 3.
18.8.04
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, xii. a dor é um excesso de intimidade comprimida pelo silêncio. s. d’o.
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, xi. o deserto e o mar são planícies em forma de labirinto. s. d’o.
17.8.04
cinememorabilia (suite de variações sobre memento, em cosmorama e três tempos)
cartograma de si. a identidade é o roteiro de legendas tatuadas no corpo. 3.
16.8.04
dos segredos
no lento correr que a personagem transmite
não há uma sensação que vingue a sua
pertença ao mundo. é por ela, por essa
pertença ao mundo, no entanto, que
se vai estranhando a intimidade, a
realidade que se faz íntima. e que distorce
a visão. e que reduz o subterrâneo à
superfície. e que torna evidente tudo
o que existe. pois o que sobra e se reserva
dos olhos é segredo. e dos segredos
é conveniente não falar-se. s. d'o.
14.8.04
cinememorabilia (suite de variações sobre memento, em cosmorama e três tempos)
verdade. a confiança não se descobre nos corpos, nas coisas que se tangem, mas nos reflexos que regressam e se encontram contra si-mesmos no momento, no instante em que se reflectem. 3.
13.8.04
a impressão daquele dia
a impressão daquele dia. a virgem
louca desejava nêsperas. porém, sobre
a mesa, exposto como natureza morta,
havia apenas um pêssego, que ela rejeitou.
rejeitou tanto por desejar nêsperas
quanto por não apreciar a textura
da polpa do pêssego. preferiu, por
isso, mastigar demoradamente os dedos
da mão esquerda. s. d’o.
12.8.04
cinememorabilia (suite de variações sobre memento, em cosmorama e três tempos)
in illo tempore. quanta memória suporta e devolve uma polaroid? 3.
11.8.04
ritual lipset
as mãos embrulhadas no
balanço azul atlântico
confessam.
o exorcismo das sombras
redobra a culpa na
memória.
e a noite, como uma forma
de devolução a si, tatua-se vingada
no corpo, que se descobre, confessa
e consome lento. sem baptismo. s. d’o.
10.8.04
o corpo de cordas. este é o corpo, le violon d’ingres, entregue, em photomaton, para redenção dos pecados do mundo. 3.
9.8.04
a mãe de um mar
nesta parábola não há culpa.
a viúva de um poeta imaginou
sufocar a loucura. desceu do enleio
onde habitava, segurou-se ao chão
e nadou no mesmo mar onde os
naufrágios fazem cada incêndio ser
um corpo submerso. s. d’o.
7.8.04
antes do novo mundo. quantos são os justos? não é uma interrogação descontraída. sem se saber o seu número não é possível começar a construir o mundo novo. pois que, antes de qualquer inclinação dos gestos a essa empreitada, é conditio sine qua non saber a amplitude necessária a dar à vala comum. 3.
6.8.04
imortal
quase nenhum medo a tocava
ou perturbava, excepto um. a ressureição
era o seu singular e único temor. s. d’o.
5.8.04
cinemarginalia (the misfits, suite em tríptico)
o sono de roslyn. a mulher não dorme. a mulher resiste vencida. e é esse o amor que não se vê na solidão que a manhã lhe traz. 3.
4.8.04
3.8.04
cinemarginalia (the misfits, suite em tríptico)
a luz na sombra. a mulher é o fruto de uma árvore que amadurece quando caminha descalça. é por isso que é mais próxima da maçã do que qualquer outro fruto ou forma de pecado. 3.
2.8.04
a morte dos ventos
estão mortos os ventos e o
sol vinga-os, sem se desperdiçar,
oferecendo-se inclemente aos
chãos do céu e da terra. o sol é
o vingador perfeito porque, dando-se
a todo o caminho, caminho permanente
que não tem noite, não conhece a
necessidade de regressar
a si. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).