chamem a polícia. há dramas-noir, como touch of evil, de orson welles, em que são os próprios detectives, o good cop (que consegue amar) e o bad cop (que oscila entre a amoralidade e a imoralidade), que brincam o jogo dos polícias e ladrões. 3.
há uma raiva erguida no silêncio
que acontece limpa quando
o tempo esgota o exílio
e são convocados os gestos
que a liberdade confirma
urgentes. s. d’o.
este lugar é talvez uma ilusão. o azul
que reflecte é demasiado aceso, mas sem
a fluorescência prenha que o faria
não existir aqui, à margem.
é um lugar balancé, agitado, de contornos
incertos, que se joga, que toca e foge, entre
o limite e o exílio de si mesmo. as mãos
não o seguram, apenas o cortam, sem ferida,
quando o tocam. s. d’o.
death can dance. em det sjunde inseglet, de ingmar bergman, a morte dança, embalada por um friso melódico que uma orquestra, a vida, lhe toca para os passos exactos. 3.
se o sangue refulgisse nas sombras
a verdade? e não a festa. suportar-se-ia
o mundo na mesma exacta proporção,
no contraste que o costume convence
a permanecer nas mãos. e os burocratas
cantariam semelhante ofício, desenhando
o mesmo mundo novo que conhecem
e não inventaram. s. d’o.
variações ligeiras sobre sombras e outros demónios, ix. o crepúsculo conforma-se quando se dissipa e disciplina o contorno do futuro que o anúncio da noite transporta. s. d’o.
não sabia da terra áspera
a dor que nela nasceu.
não sabia do conforto da paisagem
o lugar com deus morto.
não sabia do medo
o que alcançam os gestos vingados.
não sabia da fronteira
o traço que une e sangra a inquietude.
não sabia do zodíaco
o signo da pátria e da loucura.
não sabia da fome domesticada
a vontade de segurar a força.
não sabia dos lábios
o silêncio ou a solidão.
não sabia do corpo
o perfume do sangue cálido.
não sabia dos filmes de kassowitz
o título original, sequer sabia os filmes.
não sabia da cidade
o tom da noite ou a vergonha da aurora.
não sabia dos ventos
a espessura do sofrimento que cortam.
não sabia de orgy in rythm o ritmo ou a melodia.
não sabia da vida
os segredos que o mar murmura.
não sabia da aritmética
o mapa para o êxito.
não sabia do gin tónico
o sossego e a sede.
não sabia de my cousin in milwaukee o paradeiro ou o domicílio.
não sabia de saturno
os anéis.
não sabia de reservoir dogs, bound, fargo ou u-turn o enredo e as alegorias.
não sabia de thomas mann ou robert musil
a existência ou a literatura.
não sabia das coisas
o peso ou a forma.
não sabia de si
o nome, a mulher que se sentou sob a sombra da fúria. s. d'o.
sol, a vida ressoa na praça. suspira
a rapariga. vai-lhe o amor do
regaço para a esplanada, onde
os outros já riem dela. e ela,
destroçada, lacrimosa, dorida,
ainda sorri, antes de partir
sem engano. s. d'o.
havia-lhe um alheamento no olhar, embora
preservasse o brilho. já não discutia a hipótese
de interromper a eternidade e afirmar a glória
como a ausência de si mesma. e já não lhe eram
suficientes as naturezas e os infinitos que contêm.
a órbita da inquietude deixara de a iludir, a
vida deixou de lhe parecer arrumada como um
jogo. e, sentida, disse a parcela de nostalgia que não
se distingue do exílio, da fronteira da fuga, do lamento, da
vontade, sou eu, eu que não sou imortal e me confesso ao mar
e aos frutos, antes de adormecer e tornar a ser
a solidão que se preenche de um excesso de
auto-presença. s. d'o.
f(e)rida. a generalidade dos auto-retratos de frida kahlo disfarçam a ferida que, por a atravessar desde a adolescência, a partia por dentro. um desses auto-retratos, la columna quebrada, porém, disfarça essa ferida de outro modo. denunciando-a, mas mostrando uma dor que nunca lhe tocou a beleza. 3.
o casino suite, cena iv. a superstição haveria de lhe valer o jackpot. não obstante a insistência, não valeu. amanhã, por vingança, ele apostará noutra slot machine. mas a vingança significa uma expectativa de fortuna, fortuna que, aposta após aposta, vingança após vingança, nunca lhe aconteceu, nunca lhe acontece. 3.
derrama-se, como a vida a prometeu,
sobre deus, entregando-se para ser de
nenhum homem. e é cautelosa na
confidência ao tempo. sabe-o longínquo,
indulgente e sem reservas. é por isso que
foge dele, do tempo. para se sentir mais
exacta no pecado de ser livre. s. d'o.
she done him wrong. a mulher, depois de se insinuar demoradamente pela sala, aproximou-se dele e perguntou is that a gun in your pocket? or are you just glad to see me? imperturbável, ele levou o copo ao lábios, olhou-a ostensivamente e não lhe respondeu. a lady lou é outra personagem, pensou ele, no instante. ela, sugerindo-se assim, voluptuosamente, ter-me-ia perguntado why don’t you come up sometime 'n see me?, continuou ele em raciocínios. por um único motivo e juízo, when women go wrong, men go right after them. ele, pelo menos, por si, iria. 3.
exercícios de estilo em allegro e encontro, v a denúncia do demónio mecânico, por huxley
a sua voz tomou o tom de libelo, pronunciado. a
máquina é a conquista, o suplemento que extende
o alcance dos gestos, a transcendência. porém,
acrescentou ele, a máquina, onde o juízo vacila,
não é inocente. é por isso que, tendo oportunidade,
se vinga, indo para além da ameaça, travestindo
a necessidade em ofício, transformando o espírito
em obediência. o silêncio do auditório revelava
mais inconsciência do que assentimento às
suas palavras. ele pressentiu isso mesmo quando
rematou a prelecção, tenho dito. então, súbito,
huxley arrumou os papéis e correu para casa,
tentando evitar a civilânica do conforto. s. d'o.
o casino suite, cena ii. ele anunciou a aposta, tomou os dados, agitou-os na mão, lançou-os sobre a mesa. alea jacta est. qual foi a sua sorte?, foi azar. 3.
exercícios de estilo em allegro e encontro, iv feitos e defeitos do velho marinheiro, que coleridge contou
foi a fome, respondeu o velho marinheiro
a quem lhe perguntara por qual motivo
havia ele, com um flecha, trespassado
o albatroz dos bons augúrios. pois morta
a ave, que era uma obra e um sinal de deus, mataste
o motor do vento. tormentas, agora, se avizinham.
e tenebroso será o casamento entre o mar e o céu,
para chorar o derramado sangue do que era
uma obra e um sinal de deus, protestou o
piloto, aturdido como a demais tripulação
da barca, entre a razão e o temor. s. d’o.
vertigo. a alice nunca foi a oz. a alice nunca foi à terra do nunca. a alice esconde-se do outro lado do espelho e quer fugir. a alice é uma rapariga que não existe sem medo. porém, a alice não chora. 3.
exercícios de estilo em allegro e encontro, iii o mundo é inteiro, disse calvino
quanto maior seja o universo mais provável
é a hipótese que não seja universo, mas
universos. e o plural, porque labiríntico,
como os desertos, é uma outra forma de
infinito dentro do infinito, sentenciou calvino,
enquanto olhava o céu e apontava, uma
após outra, todas, as estrelas de andrómeda,
repetindo incessantemente o gesto, depois
de as esgotar. s. d’o.
obituário suite, sophia de mello breyner andresen. calou-se hoje, para o que resta de sempre, sophia, a voz de onde se ouvia o mar, de onde se via a madrugada. permanece, porém, o seu eco, a força que reconstitui o som do mar, a serenidade não calada que recupera e devolve celebrada a imagem da madrugada. 3.
exercícios de estilo em allegro e encontro, ii a mão de borges
há o verdadeiro. há o falso... borges suspendeu
a oração neste instante. continuou a
olhar para a mão e acrescentou mas os
outros três dedos não são desperdício. são
dedos, dedos que, no seu conjunto, desenham uma
estrela. e mostrou a mão, aberta, aos que o
ouviam. s. d’o.
a aproximação de cassini-huygens à casa dos anéis. saturno fulguriza pela forma como que se prenuncia no horizonte, como se desenha destino, como se deixa aproximar. entre os planetas mais próximos, saturno é de outra atracção, tem outra entoação na humanidade, esconde outra gravitas. e é, agora, o rendez-vous, o encontro que começa a alcançar-se com a mão, sem o espectro auxiliar da imaginação. 3.