31.10.07
testamento a depois
esta é a minha morada, esboroada, caída nas provas,
cercada e pungida pela condição insular, lenta,
demorada nas horas, sem espanto ou abrigo, aberta
no terreiro e lavada na eira. é aqui que sou, cavado
no nada onde começas, cavado no covil em que cresço,
íntegro e inteiro, quebrado no corpo que quebro,
prenúncio em que digo a morte. sou a exercer magistério
de solto. e, quando não for, se não for por preguiça,
é porque já fui. soltem o repique de aleluia e levem-me,
sem capelo, sem solenidade. se me fizerem a vontade,
restarei cinza. s. d’o.
29.10.07
kamikaze waits
sentiu o outono nas mãos. não tinha significado semelhante
ao do outono marcado na agenda. nas suas mãos, a estação
não era de papel, não era o canto do instante que o equinócio
demora a virar.
havia mais de uma semana que o outono acontecia-lhe assim,
nas mãos, concreto. com ele, ainda a sul e com a luz
durante mais tempo, começou a aprender a massa hiperbórea.
depois sentiu a emigração dos pássaros em avesso. chamam
a esta sensação o apelo do norte. porém waits não partiu,
ficou, sabedor que haveriam mais outonos suceder
como aquele, atingidos nas suas mãos como certeza,
ali, naquele mesmo lugar. s. d’o.
12.10.07
o conservador
julgo que havia um placard neste passeio, precisamente
neste passeio, aqui ou pouco mais adiante, posto no gradeamento
que contorna todo o jardim. não recordo a mensagem inscrita
em tal placard, recordo a sua forma apenas, hexagonal,
fundo branco. porquê?, porque ando a treinar a sensibilidade
para os detalhes. s. d’o.
10.10.07
o professor
ao corpo disputo a fome e a fé, das quais
um efeito repulsivo me afasta. não desisto.
como uma mãe colhe o seu fruto, seguro
uma telefonia antiga junto ao corpo.
acredito que deus transmite em onda curta,
não em onda média ou frequência modulada.
acredito assim porque imagino-o próximo
e deferente, ao nosso alcance, possível
de encontrar. atesta este credo nenhuma prova
distinta do meu coração maçado. s. d’o.
8.10.07
o viajante
venho da possibilidade de amar sem espera,
de encontrar-te na cumplicidade que as palavras
podem. venho tarde, eu sei, cheguei agora.
e sei que agrava a situação o facto de, para continuar
a ser o resgate da ferida que sou, ter que regressar
ainda hoje. de outro modo, aqui, serei um engano apenas.
sabes?, não, não posso ficar. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).