31.3.05
vox. deus não existe. o mais aproximado a si que existe são as vozes pelas quais ele se manifesta. a voz grave e negra de mr. scrap, em million dollar baby, é uma dessas vozes. 3.
30.3.05
29.3.05
optimismo fatalista, ii. segundo auguste comte, “não se pode explicar a humanidade pelo homem, mas, antes, explicar o homem pela humanidade”. o que, assim posto, ilustra de outro modo, moderno, a divisa clássica non sibi, sed toti genitum se credere mundo. 3.
28.3.05
o corpo para além da parede que é
nas minhas veias vinga a demência
e aí habitam as minhas mãos.
e queres saber um segredo?, no ofício
da loucura não há segredos, porque
tudo é íntimo, de dentro.
e queres saber outro segredo?, crescem
em mim os murmúrios, crescem as
vozes vencedoras.
não, não é a minha imaginação, são os
gritos. conquistam-me. e são esses
gritos que por mim se fazem gestos e
insubmissão e pulsam.
olha as minhas mãos, olha,
estão soltas. s. d’o.
26.3.05
optimismo fatalista, i. segundo auguste comte, “entre o homem e o mundo coloca-se a humanidade”. o que, assim posto, ilustra de outro modo, moderno, a divisa clássica homo sum, et nihil humani a me alienum puto. 3.
25.3.05
o homem que começou o mundo
de um lado ou do outro, o das
substâncias ou o da névoa,
talhando o fôlego, um homem,
como deus fosse, começou a obra.
no primeiro gesto soltou as mãos.
depois, ainda antes de qualquer
outro gesto, recolheu-as. e disse
estou cansado, vou descansar, deus
está quase a chegar. s. d’o.
24.3.05
o despertar dos monstros. segundo francisco josé de goya e lucientes, o sono da razão produz monstros. é provável. mas o sono da razão não produz mais monstros do que o espelho onde alguém se encontra. 3.
23.3.05
visão
devemos aprender a não responder
aos poemas. se necessitamos de caminhar,
caminhemos. façamos o caminho com
os passos e, se necessário, com as mãos.
uma vez vi uma mão invisível. corrijo,
uma vez vi a mão invisível. e não foi
a resposta a poemas que me fez o
caminho para essa mão. foram os
passos, os meus passos, antes de cair. s. d’o.
22.3.05
tough ain’t enough. crescer é adquirir competências para combate. percebe-se o crescimento quando o corpo, numa cadeia de solidariedade orgânica que se estende das vísceras ao coração, é capaz de suportar os golpes que o encontram e de reagir contra a origem de tais golpes. o resto, a resistência estrutural escorada no osso, é natureza ou contingência. 3.
21.3.05
na madrugada
são duas da manhã e ele não acorda.
continua a querer ser ambicioso e
ter mais tacto. pois, como está,
acredita que ninguém duvida do
próximo corpo. s. d’o.
19.3.05
progressão vectorial dos corpos. a partir de um determinado limiar de intimidade, a aproximação é um modo de produzir distância. 3.
18.3.05
recusas
à tua ameaça
digo não.
e ao teu convite
digo não.
à tua esperança
digo não.
e ao teu pai
digo não.
à tua lição
digo não.
e ao teu protesto
digo não.
à tua fome
digo não.
e ao teu poema
digo não.
à tua verdade
digo não.
e ao teu corpo
digo não.
à tua canção
digo não.
e ao teu beijo
digo não também.
à tua presença
não digo não,
digo apenas saudade. s. d’o.
17.3.05
eros thérapie. depois do fim, os beijos começam a purificar-se. tanto que, quando puros, deixam de ser beijos. 3.
16.3.05
oração consumator
ele conhece uma canção
onde fallen angels
rima com power rangers.
sob essa canção,
ele dança,
dança com as sombras.
com essa canção,
ele dança,
dança sob as sombras.
e dança
porque deus,
o seu deus,
é uma luz de néon
que,
nocturna,
cintila
e,
a vermelho escrito,
vingado,
todos os dias,
diz coca-cola. s. d’o.
15.3.05
quando fahrenheit 451, por truffaut, ii. neste retrato, anúncio da incineração de livros, de que lado está a inocência? 3.
14.3.05
o teu corpo
o silêncio é o enunciado do teu corpo.
e, por seres a carne pela qual deus se escoou
para ser a sombra da cruz, o teu corpo é
também o continente que se estende eterno, para
ser o vazio translúcido do nada, a esperança. s. d’o.
12.3.05
quando fahrenheit 451, por truffaut, i. para onde fogem aqueles que serão livros? 3.
11.3.05
habitar a sombra
publicar o silêncio talvez seja o
acto da condenação, a oração que
separa o cálice e edita deus sob
a forma incondicionada do que se
ultrapassa e faz sopro.
e talvez seja também o impulso trémulo
pelo qual se cria a habitação e, depois,
a integral vontade de habitar esse lugar
aberto na sua própria sombra. s. d’o.
10.3.05
os monstros são nossos amigos. o oogie boogie é uma versão pop do nosferatu. 3.
9.3.05
o inferno dentro
há um espaço que se resolve na palavra
e dela faz nascer a habitação, o lugar
onde o ser se fecunda de si e se projecta
corpo ou coisa. nessa habitação cabem as
mãos que conseguem a obra e nela inscrevem
o seu domicílio.
lá fora, para além da palavra, é o mesmo
mundo, mas mundo que não é for(m)a, apenas
horizonte interior. sobre o qual o corpo
desliza, como se fosse o chão de uma
superfície lavrada em chamas. s. d’o.
8.3.05
dancing days. o corpo, enquanto atelier de ritmos, é um sólido animado, sujeito de lei performativa, fronteira suspensa contra os compassos que persegue. 3.
7.3.05
ele
não está preparado para que o tempo
termine. porque os braços, vazios,
doem-lhe e são vida ainda acordada
de quando cheios. s. d’o.
5.3.05
a theory of justice como ego trip. uma das consequências da ironia é a responsabilidade pessoal, ou seja, uma preocupação particular com a justiça. 3.
4.3.05
passos para a falência
começo pela hesitação, não pela exactidão.
é um modo de princípio que contraria o tempo,
a pulsão do verbo, e serve os passos.
depois avanço. avanço lento, sem vacilar. e pelo
caminho, sequência de horizontes desenhados como
labirintos, sinto que contigo já sei o horóscopo
da ausência. é a primeira sensação de falência
que me colhe. não me detenho, porém
depois continuo a avançar. sozinho, talvez mais
sozinho, atento aos desvios. prossigo contra
o destino. contra o amparo. é quando me toma a
segunda sensação de falência. não espero. e sigo.
sigo pelo caminho que ainda não é meu, que os meus
passos ainda não encontraram. sigo a acreditar na vida.
sigo a acreditar que deus tem as mãos no crepúsculo
de todos os dias, de todos os nossos dias, e, aí, é
ele sempre a fome, capaz de jurar sobre os despojos
e o silêncio que, como obra sua, semeou a natureza
assim, com lei e destino de engano. s. d’o.
3.3.05
documentário. a televisão, no modo como acontece, sobretudo em reflexo programado, é o arquivo digest da mundialidade entretida no respectivo ritmo. 3.
2.3.05
sentença
nesta audiência, admito-me órfão,
razão e consequência de outra
morte, onde acordo narrativa
da minha culpa. s. d’o.
1.3.05
sideways. a revelação é o processo pelo qual a substância se desdobra entre o destino e a origem, abrindo um intervalo na latitude que compassa o círculo onde deus se pressente. é aí, nesse intervalo, que o engano pode acontecer. e a inocência também. 3.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).