31.1.05
justificações
porque há na cidade inteira,
disposto, um corpo cavado fronteira.
porque o tempo se faz chão
e revolve violentamente os passos
para diante.
porque a evocação da luz é
a sensação de uma cratera em
tempo lento.
porque a imagem da lâmpada
talvez seja o traço travado
de uma nova luz, matéria capaz
de oscilar na imperfeição do
olhar moreno.
porque a sombra dos fragmentos
aponta para a tua boca, num tráfego
de evidência, palavras de sangue
sem silêncio, sem exactidão.
e porque nestas mãos não cai
a inocência, mas apenas a sensação de
cumplicidade aberta e acordada. s. d’o.
29.1.05
variação sobre um tema de austin (dance ii)
corposto. não dobra o nome, não vai o corpo mais visto por ter sido nomeado, pois apenas se diz o que se vê animado. 3.
28.1.05
confianças
confio no nome das flores e na
essência das túlipas, das açucenas,
dos nenúfares. confio nas magnólias,
nos jacarandás e no perfume dos
pêssegos felpudos. confio nas mãos
que mostras e mais ainda nas palavras
que dizes. mas confio-te também,
costumo chegar atrasado ao tempo
do encontro, sou corpo de outono
e não confio nos amores-perfeitos. s. d’o.
27.1.05
variação sobre um tema de austin (dance i)
decadança. o corpo feito nos gestos, pronunciado no movimento, suspenso na sua própria gravidade, entre os objectos que o definem estranho, embalado no ritmo de uma melodia que não se vê. 3.
26.1.05
25.1.05
toda a verdade. e se depois ele dissesse je suis petit voleur, grand faussaire, flambeur, vitriolé, dépressif, pessimiste forcené, fier, tricard, indélébile, maladroit, addict et violent, mentiria apenas no nome, lucien ginsburg. 3.
24.1.05
é assim que as coisas são
v.
há um catálogo de dúvidas, outro de
enganos. no primeiro condenam-se os
azares. no segundo confessam-se as
fomes roubadas. s. d’o.
22.1.05
escala e o outro lado do mundo. se nada, é tanto. 3.
21.1.05
é assim que as coisas são
iv.
quem limpa os óculos para perceber
as alíneas do ofício não é o seu
alinhamento que perscruta. s. d’o.
20.1.05
eco musil. olha-se os outdoors de propaganda política, cartazes de um homem só, e ressoa um título, der mann ohne eigenschaften. 3.
19.1.05
é assim que as coisas são
iii.
o meridiano do sexto círculo
não é uma ilustração inocente, mesmo
se traveste o incêndio e
consente o silêncio. s. d’o.
18.1.05
cinemarginalia (variação sobre viridiana, de buñuel)
apelo. por mais prometido a deus que um corpo seja, esse corpo não deve evitar a humanidade, a carne em que o habita. 3.
17.1.05
é assim que as coisas são
ii.
a adivinhação nostálgica, que não
se confessa nas convenções do tempo
é, na verdade que tem, um realismo
fora de horas. s. d’o.
15.1.05
and still they don’t believe me, and still they don’t believe us. o nós, pronome, primeira pessoa do plural, é uma comunidade imaginada, porquanto o eu, primeira pessoa do singular – e condição da primeira pessoa do plural, o nós –, não se pluraliza. tão só, se possível, se reúne. 3.
14.1.05
é assim que as coisas são
i.
há um efeito supremo na sombra,
por ser a quaresma que a lei
solar não contém. é assim que
as coisas são. s. d’o.
13.1.05
12.1.05
11.1.05
it takes two to tango. quantas almas em corpo são necessárias para acompanhar maría de buenos aires?, a ópera tango de astor piazolla, apenas uma? ou duas? sabe-se quantas, consoante o regime de solidão encontra os corpos que se encontram. 3.
10.1.05
prováveis
talvez a flor mais breve
seja a erradicada nudez de
ti. nela a minha sede. nela a
minha vontade.
talvez a manhã mais próxima
seja quando regressaste a
quem não és. e ficaste escondida
em ti. e roubada de ti também.
talvez a rua onde todos os murmúrios nascem
seja não mais o pêndulo da tua paixão em
corpo ou imaginação. e em ti sou a cair
para, depois, me levantar ao teu lado.
e talvez, sim, talvez o tempo seja a companhia
dos meus actos e não o espectro que os sombreia,
o osso onde me dói a ausência e faço esperar
o futuro que o zodíaco não diz. s. d’o.
8.1.05
para além de salomão. a inocência não é presságio de inocência, mas de culpa. 3.
7.1.05
rendição
e nenhum, de seu corpo dito, se
consentiu ao combate, vencendo
o medo de vencer. s. d’o.
6.1.05
corpo sentido. o corpo é um objecto que se sente por dentro, imanente, portanto. e, porque se sente, tem o corpo que ter um nome. este chama-se yossarian. e nele nasceu a sobrevivência e, depois, ao abrigo do artigo vinteedois, tudo o que não podia e era vida. 3.
5.1.05
nestas mãos
nestas mãos, intimamente presente,
impregnado, habita o perfume da solidão
e o lugar já não preenchido dos teus
olhos. mas no meu peito, lavrado a formão
e dor, acontece a pronunciada inclinação
contra a vida, para fazer a conquista e
não o resgate ou o regresso. s. d’o.
4.1.05
exercício de paráfrase, iii
cão como deus ao contrário. como contado por paul auster, em timbuktu, willy nasceu william gurevitch. porém, um dia, depois de um encontro fortuito com o pai natal, também por homenagem à personagem e por pretender aproximar-se à condição de santo, decidiu chamar-se willy g. christmas. de willy sabe-se pouco, que tinha um cão canis familiaris, o mr. bones. e acreditava ele que esse cão algo tinha de divino. pois não admitia ele que mero acaso fosse o facto de, em inglês, a inversão da palavra palavra cão, dog, permitir ler o nome de deus, god. 3.
3.1.05
persistência do amor
amarga, de ferida, esta sensação de
fim, fim nosso, por a esperança
continuar a guiar os meus gestos
para ti e, em mim, persistir
verdade, e não engano, o
transitivo predicado amo-te. s. d’o.
1.1.05
janus. o que morre, nasceu? ou nasce? 3.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).