28.5.10
suite roteiros, vii
e se depois
e se depois houvesse quem, só houvesse quem e mais ninguém,
que na relação mais durasse e não magoasse, que fosse assim
e a verdade, toda a verdade, apenas a verdade, nada menos
ou mais do que a verdade, nesta cidade onde estou sem saber
porquê, sei apenas que às contingências não se endereçam perguntas
e delas não convém esperar confidências, e se depois houvesse quem
dissesse que não estamos preparados, e preparados para quê?,
preparados para estarmos e sermos simplesmente, como eu sou o único
da família ainda vivo e sem a preocupação de amanhar testamento,
porque e se depois houvesse quem, quem quer que fosse,
não seria eu. s. d’o.
26.5.10
suite roteiros, vi
ainda new york
na tua américa, a minha também, o sangue, inevitavelmente
o nosso sangue, a necessidade pública de morrer, tudo
faz parte do jogo.
sofrer, sofrer necessariamente, não cheirar as coisas,
não beber coca-cola, deixá-los fumar marlboros ou sg lights.
somos o mundo pequeno, quatro na mesma mesa, tão mundo
quão pequeno, que, sendo, cada um de nós é, nas formas
e nos modos que pode, as mulheres, os homems, como se
as mulheres e os homens fossem respectivamente a mulher
e o homem, singulares, sem aquele lugar para descobrir
a esposa, a amante, o amigo, o traidor, o crime, o castigo
e o motivo de um e outro. não sei porquê, continuamos
à espera dos detectives. s. d’o.
24.5.10
suite roteiros, v
após calipso
se as preferências são o que são, algo antes e algo depois,
não importa o que seja a revelação pessoal. nenhuma angústia
decorre daí. o suicídio já existe, já existia, antes de ser
ideia ou forma que se encontra com a vida. e foi assim.
ela olhava o mundo novo, olhava-o sem deslumbre, assumia-o
como se fosse o testamento antigo, como o princípio foi
escrito, em que as armas dormiam com os corpos por serem
para o espírito da propriedade e da defesa, na autencidade
da terra, dos rebanhos e dos sacrifícios. não havia deuses
desconhecidos, morria-se por doença ou dilúvio e ela descobriu
que podia morrer também por si. e morreu. s. d’o.
14.5.10
suite roteiros, iv
contigo
requinte, elegância, ó, tudo bem. meto a língua fora da boca,
tento incendiá-la com um isqueiro. não sei se isto é uma manobra
moderna, a cena não parece que seja. e não espero que olhes
impávida para o meu gesto, não tens disposição a colidir
como eu tenho, com a loucura. se sou forte?, ó minha amiga, não
sou. o choque frontal convém-me mas não é assim tanto, prefiro
o borrão, o contágio pelo que possa doer, infecção, sem antibiótico. s. d’o.
12.5.10
suite roteiros, iii
new york
esta morte próxima não dói, não tem sangue, não tem nódoa
e parece não ter cheiro. bem sei que hás-de avisar-me, é assim
porque a morte é fresca. talvez seja, mas eu não declarei a morte
fresca, declarei-a próxima. não estou a tentar um exercício
surrealista, estou apenas cansado e sem paciência para diluir
paixões ou infinitos neste episódio. tu és quem estende a fita
amarela com a inscrição police line do not cross. vamos esperar
os detectives. s. d’o.
10.5.10
suite roteiros, ii
um dia na vida de uma pessoa
uma pessoa passeia uma televisão. a pessoa senta-se na cadeira de uma esplanada e senta a televisão numa das cadeiras ao seu lado. depois a pessoa levanta-se e continua a passear a televisão até que se senta no banco de um jardim e senta também a televisão nesse banco. depois a pessoa regressa a casa com a televisão e deita-a na cama onde se deita também. a pessoa adormece de frente para o ecrã da televisão e tem sonhos a preto e branco. s. d’o.
2004/2024 - serôdio d’o. & 3ás (escritos e subscritos por © sérgio faria).