antes
durante a infância, tínhamos todos os dias para começar. bastava acordar. o tempo obedecia a uma economia de princípio. era muito o que podíamos perder, quase tudo, mais do que quase tudo. não repetíamos os erros por haver muitos mais do que aqueles que havíamos já cometido. era assim que aprendíamos as novidades. todos os dias. diante desfilava tudo o que ainda poderia acontecer, um mistério sem guião. não poupávamos nos gestos, apenas nas palavras, porque eram-nos estranhas. colhíamos pedras do chão, para, uma a uma, as atirar à agua e testemunhar a vibração que resultava do choque dos elementos diferentes. havia uma prova de culpa que era necessário confirmar e aí demoravam-se os nossos gestos. sempre depois, sentíamos crescer a soberania. sentíamos haver amanhã, porque todos os dias eram para começar. e das pedras e da água passámos às plantas e aos animais. aos poucos passámos a nós também. entranhava-se a vida no corpo, a sequência das coisas, a consequência dos outros, as distâncias. no dia em que aconteceu o primeiro regresso deixámos de poder voltar. havia já na carne o amanho a que não era possível renunciar. uma forma comprimia o corpo. então, já. laus deo. a partir desse momento, crescer foi a continuação possível, sem a ideia de forma, sem ritmo preciso, mas guardados na forma. que agora, folie à deux, é um órgão nosso. s. d’o.